sexta-feira, agosto 25, 2006

TRANSFERÊNCIA E DROGADIÇÃO

Não há clínica sem transferência. Toda a clínica baseada no sujeito pressupõe a transferência, seja ela: médica, psicológica ou psicanalítica. Somente a clínica mecanicista, isto é, a que se constitui apenas pelos exames e medicações prescinde da transferência.
Quando alguém procura um analista para marcar uma hora, dizemos que há uma demanda de atendimento, mas não há ainda transferência. A transferência se constituirá a partir das primeiras entrevistas.
Para a clínica psicanalítica a transferência será o pivô, o eixo no qual gira, se desenvolve o tratamento. Por esse motivo é que para a psicanálise este termo ganha uma dimensão muito específica.
Quando uma pessoa busca um analista, essa busca é vinculada à hipótese de que há um saber em jogo no seu sintoma. Ela quer saber o que se passa com ela: Porque repete uma conduta indesejável que não consegue parar? Qual a razão da sua inconformidade, se podia ser feliz com tudo que a vida lhe deu?
Assim, se por um lado falta o saber, por outro, acredita que ao encontrar a resposta alcançará sua cura. Esse saber que desconhece o sujeito busca fora dele, num outro.
O analista será colocado no lugar daquele que sabe o porquê de sua dor. Essa suposição de saber, que o analisando coloca no analista, constitui a transferência. Cada vez que para uma pessoa essa função do sujeito suposto saber é encarnada por quem quer que seja, analista ou não, isso significa que a transferência já está estabelecida.
Ao analista cabe emprestar sua pessoa para encarnar esse sujeito que se supõe saber, mas ele não deve de maneira alguma identificar-se com essa posição de saber que nada mais é do que um erro, uma equivocação.
A posição do analista não é a de saber, nem tão pouco de compreender o paciente, ao contrário, sua posição, conforme ensina Lacan, é de ignorância. Uma ignorância que podemos traduzir por um convite não apenas à prudência, mas também à humildade, um convite a se precaver contra o que seria a posição de um saber absoluto.
Mas se por um lado o analista não se coloca nesse lugar de saber, por outro também não rechaça essa posição. Ele empresta sua pessoa para ser colocada neste lugar, visto que a análise se realizará a partir da instituição desse outro (o analista), como o sujeito suposto saber.
E é por estar em jogo o saber que o analisando fala. Fala pressupondo que o saber está no lado do analista, mas se engana, porque o saber está no lado do sujeito que fala.
Para que esse saber circule, exige-se que o analista se abstenha de querer dominar, controlar a vida de seus analisandos: de querer educá-los, adapté-los. Pois, assumir o lugar daquele que sabe, é se identificar com o lugar de amo, da figura que se presta a ser modelo, a ser a ideal, provocando a partir desse lugar traços identificatórios.
Podemos falar então da transferência como o amor ao saber, diferenciando-a de qualquer outra relação quotidiana de amor. Fora da relação analítica buscamos no amor um objeto (uma pessoa) que nos preencha, que nos torne completo, pois acreditamos que esta completude nos dará felicidade. O objeto do amor será sempre aquele que sonhamos poder nos completar, aquele que um dia, alcançado, nos trará a felicidade eterna de não mais sentirmos falta. Conforme a parábola de Platão: a nossa outra metade.
Um amor que demanda ser amado, em oposição à revelação acerca do saber sobre o objeto que o causa. O amor que demanda o ser em detrimento ao saber.
A esse ideal de completude do amor à psicanálise vem se opor em sua prática, pois acredita que o sujeito se constitui na falta. Ao não responder a demanda narcísica de amor do analisando, aponta para a falta que o constitui. Buscando então um saber sobre esse objeto precioso que o sujeito constrói para tapar sua falta.
Aquele que chega ao consultório dizendo “eu sou um toxicômano”, não faz uma questão, faz uma nomeação. Esta nomeação é o resultado do discurso de outros e vem no lugar do nome próprio. Diferentemente dos demais sintomas a toxicomania não constitui um enigma para o sujeito, ela está ali como uma máscara ao enigma do sintoma, como fechamento a palavra, como resposta as suas dificuldades.
É uma outra convocação que nos faz esse sujeito. Ele não demanda sentido, demanda ser amado como é, ser compreendido e encontra no analista alguém que compreende algo que vai além da sua relação com a droga, algo que experimentará como enigmático. Que quer esse sujeito de mim? – se perguntará então.
Que o toxicômano possa chegar a esta questão, é nossa aposta de tratamento. Pois ao abrir esse enigma poderemos ser colocados no lugar do Outro que sabe: sabe algo que ele desconhece. Possibilidade de abertura ao movimento da transferência e ao processo analítico.
Maria Holthausen

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