quinta-feira, abril 19, 2007

"O Esplendor de Portugal": a desconstrução da identidade na ficção de Lobo Antunes

 

António Lobo Antunes, o grande vencedor do Prêmio Camões de Literatura deste ano, é um dos escritores portugueses mais conhecidos fora do seu país. No entanto, ao contrário de outros ilustres autores lusitanos, Lobo Antunes nunca manteve uma grande relação de amor com Portugal. Nascido em Lisboa, em 1942, formou-se em Medicina, exerceu a Psiquiatria e participou da Guerra Colonial de Angola (1961-1974), quando as últimas colônias européias na África foram desocupadas.

Entre os vários romances de Antunes publicados no Brasil destaco O Esplendor de Portugal, cujo título é lícito interpretar pela via do irônico, pois nos remete ao último verso do hino nacional português: “Levantai hoje de novo o esplendor de Portugal”.O hino português, de 1890, conseguiu traduzir numa associação entre música e poesia o sentimento patriótico de revolta dos portugueses contra o ultimato imposto pela Grã-Bretanha. Constitui-se em expressão simbólica da nação portuguesa, vindo a ganhar força de símbolo nacional consagrado por meio da afirmação de independência que representa e reitera.

Por contraste, a narrativa ficcional do romance não se propõe a consagrar nenhum símbolo, nenhum traço da identidade portuguesa. Esse hiato entre a representabilidade significante do título e a história ficcional é o que nos permite pensar o título como uma mirada irônica do autor.A ironia é um caso típico de discurso bivocal. Nela, segundo Mikhail Bakhtin, a palavra tem duplo sentido: volta-se para o objeto do discurso como palavra comum, e também para um outro discurso. A consideração pelo discurso do outro implica o reconhecimento de um segundo contexto como meio de perceber o significado da ironia. O autor fala a linguagem do outro, revestindo, porém, essa linguagem de orientação oposta à do outro. É uma espécie de emprego ambíguo do discurso do outro. A “segunda voz, uma vez instalada no discurso do outro, entra em hostilidade com o seu agente primitivo e o obriga a servir a fins diametralmente opostos. O discurso se converte em palco de luta entre duas vozes”.

Ironizar é dizer algo pelo enunciado e, portanto, remeter à enunciação, mas é também voltar-se contra a própria enunciação acrescendo-lhe uma idéia oposta no instante mesmo da enunciação. Assim sendo, a mesma enunciação serve para dizer algo e, simultaneamente, para dizer o seu contrário, devido ao valor argumentativo oposto das enunciações. É esse valor argumentativo oposto que garante a instauração dos opostos.
Assim, compreendemos a ironia do título no justo momento em que ele afirma uma identidade nacional consagrada, qual seja, a do colonizador português, encetando já, no mesmo passo, a desconstrução - dir-se-ia que traço por traço - dessa identidade por meio da narrativa do romance.Toda identidade humana é uma construção simbólica e histórica. Como assevera Kwane Appiah: todo o mundo tem o seu quinhão de pressupostos falsos, erros e imprecisões que a cortesia chama de “mito”, a religião de “heresia”, e a ciência de “magia”. Histórias inventadas, biologias inventadas e afinidades culturais inventadas vêm juntamente com toda a identidade; cada qual é uma espécie de papel que tem que ser roteirizado, estruturado por convenções de narrativa a que o mundo jamais consegue conformar-se realmente.Para o psicanalista Jacques Lacan, o ser humano ao entrar na linguagem perde qualquer garantia de consistência. 

A linguagem constrói o sujeito em torno de uma falta, tornando-o um sujeito dividido, um sujeito a quem falta-a-ser.Por se constituir enquanto falta-a-ser, o sujeito precisa dos significantes que irão representá-lo no mundo. Esses significantes, dados pelo grande Outro da cultura, regulam a estruturação imaginária do “eu” e constroem uma identidade. Desse modo, relações de parentesco, cor, gênero e nacionalidade são alguns dos significantes com os quais o sujeito se deixa representar, ou seja, se identifica e, a partir deles, constrói seu lugar no mundo.Na narrativa ficcional de O Esplendor de Portugal, Lobo Antunes constrói personagens cujas identificações não garantem qualquer representatividade, não garantem um lugar social. O fluxo narrativo vai se armando por meio da desconstrução de representatividades estabelecidas por papéis e lugares sociais.Num jogo de equívocos e incompreensões mútuas, conversas truncada entre seres alienados de sua realidade própria, quatro personagens vão tecendo o fio narrativo do romance.

Na primeira parte, Carlos e a sua mãe – Isilda - vão sucedendo-se na narração da história. Na segunda parte, Rui e Clarisse, os irmãos de Carlos, vêm juntar as suas vozes à narrativa.No entanto, sobre o personagem Carlos é que se concentra a diluição identificatória com a qual o autor, numa brincadeira que nos pareceu às vezes cínica, às vezes sádica, constrói seus personagens.Carlos é apresentado no primeiro momento do romance como irmão de Clarisse e de Rui, e filho de Isilda. Porém, essas identificações que garantiam ao personagem um lugar dentro de uma família, vão sendo desconstruídas ao longo do romance. Logo descobrimos que Carlos é só meio-irmão de Clarisse e de Rui, e não é filho de Isilda, mas é filho do marido de Isilda com uma negra. Isilda compra a criança da mãe biológica, e traz para dentro da sua família. Afinal, Carlos era uma criança com uma pele muito clara, quase branca. Só olhando-o bem de perto notava-se que Carlos não era branco, era um preto. Não, também não era preto, era mestiço.Assim, ele é e, ao mesmo tempo, não é. A sua voz como narrador tenta definir essa inconsistência na seguinte passagem:

...as pessoas quando chamavam
Carlos
Chamavam um Carlos que era eu em elas não eu nem era eu em eu, era um outro, da mesma forma que se lhes respondia não era eu quem respondia era o eu deles que falava e o eu em eu calava-se em mim e portanto sabiam apenas do Carlos delas não sabiam de mim e eu permanecia um estranho, um estrangeiro, um eu que era dois, o deles e o meu, e o meu por ser apenas meu não era e então dizia como eles diziam

Carlos
Carlos, Carlos, Carlos

até a palavra Carlos esvaziada de nexo não significar nada salvo um som semelhante aos dos ramos das mangueiras ou aos suspiros sem perguntas dos setters no seu sono, até a palavra Carlos se tornar uma pele que se larga, não o eco de um eco mas um corpo sem vida fora da vida deles, e então podia fechar os olhos, partir do escuro deles, das preocupações deles, da fazenda deles e dissolver o meu eu em mim à medida que o relógio de parede, mudando de ritmo, intrigava os pavões..

Atormentado pelos significantes que marcam sua origem, Carlos vai mostrando que num mundo dividido entre “ser branco” e “ser negro” o mestiço está além desses lugares identificatórios marcados pela cultura. Um “entre-lugar” que para ele era percebido como “lugar nenhum”.
Ao longo da narrativa, o personagem vai sendo apresentado por várias vozes, a partir desse movimento paradoxal de construção e des-construção de todas as suas identificações.

Para a avó materna, Carlos era uma presença estranha, incômoda e vergonhosa dentro da família: Desde quando se mistura um mestiço com brancos Isilda, desde quando um mestiço come à mesa conosco?. Mas veremos que à aversão da avó pelo neto mestiço, não se diferencia da visão da portuguesa branca colonizadora pelo povo africano colonizado.

A minha avó para quem os africanos eram não uma raça diferente, mas uma espécie zoológica distinta capazes até certo ponto de imitar as pessoas e todavia sem nada meu Deus que os aparentasse a nós, basta ver do que se alimentam que até baratas engolem, basta ver como andam, reparar como transportam os filhotes, iguaizinhos aos mandris, a minha avó num eco de agonia como anos mais tarde com o padre à volta dela, mascarado de feiticeiro mas sem anilinas nem penas, desenhando-lhe cruzes na testa numa polca em latim, a minha avó olhava para o Carlos como se o Carlos não pudesse fazer mais do que mentir, os trapaceiros dos mestiços, repugnantes, sujos, por que motivo o trouxeram de Malanje, por que razão não o deixaram no quimbo a acabar de fome como lhe competia para descanso da gente.

Não é difícil detectarmos nesse fragmento a cadeia metafórica na qual a avó representa a figura do neto: “trapaceiro”, “mestiço”, “repugnante”, “sujo”. A partir destes significantes, desses lugares simbólicos em que é representado pelo Outro e pelo qual ele crê poder representar-se; pode, simultaneamente, assegurar-se de que tem corpo, de que pertence à ordem dos semelhantes. Eis aí alguns dos lugares em que Carlos, no discurso da avó, era incluído e, ao mesmo tempo, excluído da ordem dos semelhantes na família “branca portuguesa”.É também, nesse universo fronteiriço entre a interioridade e a exterioridade social, incluindo e, ao mesmo tempo, excluído dos laços familiares, que iremos constatar a posição do filho no discurso da mãe:

o meu filho Carlos, o mais velho, o primeiro dos meus filhos e Deus sabe o que me custou aceitá-lo, aquele que toma conta dos irmãos em Lisboa e acha que eu não gosto dele por.
eu não ser mãe dele.
por eu não ser mãe dele calcule-se como se a mãe de uma pessoa.
como se a mãe de uma pessoa não fosse.
aquela que o aceitou desde pequena e se afeiçoou a ele e o criou.
como se a mãe de uma pessoa não.
... o Carlos nunca soube quem era nem nunca perguntou quem era da mesma forma que estou segura que nunca a procurou em Malanje no caso de continuar em Malanje no caso de continuar viva.
como se a mãe de uma pessoa não fosse.
como se a mãe de uma pessoa não fosse a que o aceitou desde pequeno e o criou ..

A maneira pela qual o autor nos apresenta os fragmentos de idéias de Isilda, espalhados ao longo de um capítulo, aproxima-se da desordem das idéias em seu nascedouro, antes de sofrerem a influência da consciência ordenadora.

Assim, num primeiro momento, Isilda define para si mesma que a mãe de uma pessoa é aquela que se afeiçoou a esta última e a criou. Mas logo em seguida lhe vem à lembrança a mãe negra que gerou e pariu Carlos, aquela que mora em Malanje, e sobre a qual pensa que Carlos nada quer saber. Mas, na verdade, não é Carlos que não quer saber sobre essa outra mulher, ele vai atrás dela em determinado momento, ele quer vê-la, ele quer saber dos segredos que transformaram em enigma a sua concepção. Isilda, esta sim, nada quer saber sobre essa outra que foi por certo tempo objeto de desejo do seu marido. Magoada com o marido, um homem que vive bêbedo pelos cantos da casa e que não pode protegê-la, Isilda nada quer saber sobre o desejo desse homem. Então, após a lembrança de Malanje, conclui que a mãe de uma pessoa é aquela que a aceitou desde a infância e a criou.Vemos, então, que num primeiro momento Isilda pode pensar no seu lugar de mãe para Carlos, marcado não pela significação do amor, mas pela da afeição. Mas logo em seguida essa idéia é atravessada pela imagem da outra, representada pelo lugar de origem desta: Malanje. Isilda então define o seu lugar de mãe não mais pelo afeto, mas pela aceitação. Ela aceitou, com grande dificuldade, o filho do seu marido com a outra. Ela aceitou e criou a criança, que representava o desejo do seu marido por Outra, colocando-se numa posição diametralmente oposta à da sua mãe, que, como acompanhamos na narração da própria Isilda, tomava para si a função de interditar o desejo do marido pela amante francesa, relembrando ao marido que era ela, a esposa, quem deveria ocupar o lugar de objeto do seu desejo. Isilda não esquece nem perdoa a traição do marido. Ao trazer o fruto desse ato para dentro de sua casa, ela garante que o ato jamais será esquecido. No entanto, o lugar que irá ocupar não é a da furiosa mulher traída, mas antes o lugar de um aparente sacrifício abnegado. Ela aceita e cria o filho do marido com a outra, mas, nesse mesmo ato, ela se ausenta como esposa e objeto do seu desejo. A partir daí, ela pode trair o marido dentro de sua própria casa, no escritório, enquanto o marido dorme, caído de bêbado nalgum lugar da casa. Ela pode, enfim, vir a ocupar o lugar de objeto de desejo de um homem.

Isilda acredita que o filho não gosta dela. Não gosta da mãe que o criou. Acredita que a única pessoa de quem o filho gosta é a Maria da Boa Morte, a criada negra que a ajudou a criar os seus três filhos e que a acompanhará até o final da sua vida. Isilda, ao olhar para Carlos, reconhece sua própria falta refletida no olhar do “filho”.Carlos vivencia a sua dor, a sua falta-a-ser, através da sonoridade significante das batidas do relógio da sala: “sístole, diástole, sístole, diástole, sístole diástole”. Desvela-se assim na sonoridade do relógio que a função da palavra inscrita se funde com a função significante que por si só não significa nada, mas que remete à sua característica de imagem acústica. Testemunhamos o personagem imerso em som, referindo-se ao relógio como aos seus movimentos cardíacos que parecem ter vida e quem sabe tato, textura, como se as letras chegassem a poder tocá-lo.



Durante muitos anos se me acontecia acordar antes dos outros pensava que o bater do relógio de parede na sala era o meu próprio coração e ficava horas e horas de olhos abertos quieto no escuro a ouvir-me viver.

Através da sonoridade desses significantes, Carlos parece encontrar uma representação de si e um lugar dentro da família. Assim, a lembrança da mãe zangada gritando o seu nome o faz observar que

...sem entender que era graças a mim que podia zangar-se, que no momento em que o relógio, em que eu, cessássemos de bater
...sístole diástole, sístole diástole
...a casa e a minha família e Angola inteira se sumiam, tinha de permanecer quieto, com qualquer coisa no peito da esquerda para a direita e da direita para a esquerda.
...não podia adormecer, nunca poderia adormecer, tinha de ficar horas e horas de olhos abertos, quieto no escuro para que ninguém morresse dado que enquanto qualquer coisa no meu peito oscilasse da esquerda para a direita e da direita para a esquerda continuávamos a existir, a casa, os meus pais, a minha avó, a Maria da Boa Morte, eu, continuaríamos todos, para sempre, a existir.

Seria realmente Carlos o núcleo, o coração da família? Aquele que ao marcar o seu lugar como resto, como enigma, como menos um, pode vir a ser causa de desejo do outro? Carlos agrega em torno de si uma família cujos laços afetivos são frouxos, quase inexistentes. Uma família na qual o pai, totalmente imerso no solitário estado de alcoólatra, não consegue assumir a sua função de representante da lei, que poderia vir a interditar o gozo sem limite da mulher e da filha. Carlos tenta fazer suplência da falta paterna, tenta por várias vezes imprimir uma ordem à vida da mãe e principalmente da irmã, mas não consegue. Frustrado, acaba por abandonar a mãe, no seu retorno para Portugal com os irmãos. O lugar de Carlos no papel daquele que mantinha o laço familiar não era o do grande Outro, representante da lei, mas do pequeno objeto a, enquanto resto, enquanto enigma. Deste lugar, Carlos poderia sustentar a posição de vazio, de não saber, provocando no outro ou nos outros a sua volta, o desejo de saber, e daí, desse lugar, construir laços sociais. Ou então, se tornar um Cínico, aquele que não acredita nos semblantes sociais, que não acredita que nenhum significante possa fazer suplência de sua falta-a-ser, mas que, ainda assim, pode sustentar laços sociais.


No entanto, Carlos não consegue fazer nenhuma escolha. Imerso em um profundo estado melancólico e abandonado por todos - inclusive por Lena, a moça pobre com quem se casa, e da qual sente muita vergonha perante seus amigos de escola –, Carlos depara consigo solitário na noite de Natal, num pequeno apartamento em Lisboa, que não ficou um centímetro maior com a ausência da mulher “amada”: a tremer um aceno de adeus no fundo da memória.



Texto publicado no Caderno de Cultura - DC - de 14/04/2007
Maria Leite Holthausen

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