quarta-feira, novembro 24, 2010

O trabalho da forma no pensamento de Jacques Lacan:

notas sobre a relação entre estilo, sintoma e subjetividade

Meu estilo é o que ele é


Jacques Lacan

Vladimir Safatle


Ilegível. Eis o adjetivo preferido quando o assunto é Jacques Lacan. "O que bem se concebe, claramente se enuncia", costuma-se dizer a respeito desta obra capaz de causar vertigens devido a suas rupturas de planos conceituais, suas bricolagens teóricas com a história da filosofia e à incidência de formalizações lógico-matemáticas aparentemente psicóticas. Mas ‘ilegível’ não era exatamente a forma que o psicanalista gostaria de ser lembrado: "Bastam dez anos para que o que escrevo se torne claro para todos". Mais de dez anos se passaram e o que vemos é o retorno, à passarelas das modas intelectuais, da crítica ao pretenso hermetismo do pensamento francês contemporâneo. Crítica cujo alvo preferido é sempre Jacques Lacan.

Mas a verdade é que há alguma coisa em Lacan que ainda incomoda. Esta ‘alguma coisa’ é seu estilo. Na verdade, gostaríamos que Lacan abandonasse sua escrita barroca e seus gráficos, que ele parasse de construir labirintos conceituais e começasse, de uma vez por todas, a andar em linha reta respeitando a gramática da boa e velha clareza ensaística. Tudo seria mais fácil se o sujeito abandonasse a singularidade radical do seu estilo e seguisse a ordem mínima de razões. Ordem estabelecida, diga-se de passagem, graças a uma geometria retórica fundamentada a partir de analogias com os  dispositivos da geometria euclideana. Mas se Lacan recusa-se a abandoná-lo é porque seu estilo é necessário. Longe de ser um simples invólucro pseudo-literário ou pseudo-logicista, ele é a apresentação mesma da Coisa em questão na psicanálise. "Há nas dificuldades do meu estilo", dirá Lacan, "alguma coisa que responde ao objeto mesmo do qual ele trata"[2]. Há, no estilo de Lacan, um tempo para compreender que é o tempo necessário para o desvelamento do objeto do seu discurso. Pois este estilo impõe uma trajetória de leitura, um regime de aproximação que não pode ser excluída da apresentação do objeto.

A coextensividade entre estilo e objeto será claramente sublinhada por Lacan. A estrutura do estilo lacaniano seria a modalidade de apresentação daquilo que é identificável à descoberta psicanalítica: "Todo retorno à Freud que dê matéria a um ensinamento digno deste nome, só se produzirá pela via através da qual a verdade mais escondida se manifesta nas revoluções da cultura. Esta via é a única formação que podemos pretender a transmitir àqueles que nos seguem. Ela se chama: um estilo". Eis aí uma afirmação cuja intenção é absolutamente clara. A psicanálise traz uma verdade ao campo da cultura e ela só se mostra ao aprendermos a levar em conta a dimensão do estilo. Nós poderíamos mesmo dizer que tal verdade se apresenta em uma certa forma de dizer. Pois a psicanálise é, no sentido forte do termo, uma forma de dizer. Estratégia de reorientação dos impasses do pensamento através da palavra. Sua capacidade de dissolver sintomas pressupõe uma modificação radical na relação entre o sujeito e a linguagem. Afinal, se há situações em que dizer é fazer há coisas que não podemos fazer antes de mudarmos nossa maneira de dizê-las.

Um ponto cego


Mas devemos inicialmente perguntar: qual o objeto da psicanálise? Como apreendê-lo? Estas duas questões não estão dissociadas. Definir o objeto da psicanálise é definir sua modalidade de apreensão. Pois tal objeto é exatamente aquilo que se articula a partir do limite da reflexividade. Para a psicanálise, o procedimento de auto-fundamentação reflexiva da razão moderna encontra um limite que aparece como falha no interior da linguisticidade da consciência. A psicanálise é sintoma de uma época que não acredita mais que a espontaneidade reflexiva da consciência, fator de garantia da transparência do sentido e das estratégias de compreensão, possa fundamentar a racionalidade. É por isto que Lacan afirmará: "a discordância entre saber e ser, este é nosso sujeito".

Havendo uma discordância entre saber e ser, o problema inicial consistirá em compreender como escrever sua trajetória e determinar as possibilidades de sua apresentação. Se a psicanálise admite a ética do silêncio como procedimento de apresentação, então ela transforma-se em uma séria candidata a tornar-se um novo misticismo. Mas se ela simplesmente toma a palavra e fala do limite através de um estilo metalinguístico anula-se, através da consolidação de uma organização sistêmica, a possibilidade mesma de por a discordância como objeto.

Notemos de passagem que, graças às lições de Kojève, Lacan sempre tentará resolver tal impasse escrevendo tal inadequação através do vocabulário da negatividade dialética, seja de maneira explícita (até a década de sessenta), seja de maneira implícita (após a década de sessenta). O que o fará pensar a praxis analítica através de uma certa dialética negativa onde: "a verdade está em reabsorção  constante naquilo que ela tem de perturbador, e sendo ela mesma apenas aquilo que falta à realização do saber"[5]. Ou seja, a verdade como comportamento negativo em relação ao estabelecimento da positividade do saber. Um comportamento que Lacan chamará de ‘mi-dire de la vérité’.

Lacan não teme aqui em entrar em um problema de ordem propriamente epistemológica. Caracterizar a verdade como exílio, como limite à realização do saber é afirmar que a fundamentação deste saber encontra-se em posição problemática. Os dispositivos realistas de fundamentação estão descartados devido à compreensão estruturalista da relação entre linguagem e um mundo dotado de autonomia metafísica. A saída pela racionalidade intersubjetiva será abandonada pelo próprio Lacan nos anos 60. Isto significaria assumir um relativismo epistemológico que admite a multiplicidade plástica de sistemas de interpretações e o abandono de critérios unívocos de verdade? Alguns comentadores acreditaram que o pensamento lacaniano se enquadraria neste figurino relativista ou, ainda, em um certo ceticismo prudente. Nada mais distante do pensamento lacaniano, já que: "não há praxis mais orientada que a psicanálise em direção ao que, no coração da experiência, é o núcleo do real"[6]. Defesa de uma experiência do real como limite, de uma manifestação do real como presença do negativo, como tensão entre o trabalho do negativo e a paciência do conceito que nos legitima a perseguir a hipótese de uma dialética negativa operando na antecâmara do pensamento lacaniano.

É verdade que, para um certo pensamento contemporâneo, a noção de dialética na sua matriz hegeliana é um conceito vago e suspeito. Mas a experiência intelectual de Lacan será simplesmente  incompreensível se recusarmos o encaminhamento dialético utilizado para a reconfiguração de conceitos centrais da teoria psicanalítica, tais como pulsão de morte, gozo, repetição e sintoma. Encaminhamento reconhecido pelo próprio psicanalista.

Assim, nos anos 1960-61 ele falará em uma dialética do desejo[7] e em um dialética da sublimação[8]. No Seminário de 1961-62, sobre ‘A identificação’, o psicanalista acabará por fazer, mesmos sem admitir, uma crítica à analiticidade a partir de moldes lógicos estritamente hegelianos. Até porque, a função da dialética hegeliana era extamente de "denunciar as identificações em seus enganos". Em 1964, ele sublinhará a existência de um ‘movimento dialético da pulsão’. Em 1969, ele retornará à dialética do Senhor e do Escravo para ‘corrigi-la’ através da teoria marxista do trabalho e, desta feita, abrir espaço ao advento do discurso do analista: dispositivo teórico que visava formalizar a estrutura do final de análise.

Mas, para além destas reincidências no vocabulário dialético, falta mostrar o que seria e como Lacan pretende operacionalizar a redução da dialética a seu núcleo negativo, impedindo a realização desta ‘síntese fantasmática’ entre saber e verdade. Principalmente, falta mostrar como tal redução escapa do risco de transformar-se em simples perpetuação de um movimento infinito ruim e, através daí, em implementação clínica de uma ‘retórica da perpetuação da falta’.
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