segunda-feira, maio 20, 2013

Sobre "O avesso do imaginário"


A AURA E O SUJEITO EM WALTERCIO 

CALDAS

O texto a seguir é um trecho extraído do ensaio “A aura e o sujeito em Waltercio 
Caldas e Cildo Meireles”, integrante do volume O avesso do imaginário, de Tania Rivera.





Em Los Velázquez (1993), reproduzido posteriormente no Livro Velázquez(1996), Waltercio Caldas “apaga” as personagens do grande clássico da história da arte As meninas (1656), apresentando, em pequeno quadro a óleo, apenas a sala do palácio que abriga a cena da corte. O quadro não tem, é claro, a intenção de fazer-se passar pelo original – bem maior do que ele, inclusive –, mas se afirma como reprodução assumida ou, antes, mero lembrete daquela cena que se reconhece de saída, apesar da estranheza de sua “manipulação”. Ele coloca a questão do que é um quadro, um grande quadro, uma obra-prima como As meninas. Se não consiste nas personagens e no arranjo cênico entre elas, residirá ele em uma certa composição de luz? Uma arquitetura?

Para completar, uma placa de vidro semiopaca interpõe-se entre o pequeno quadro e nosso olhar, tornando-o embaçado, um tanto desfocado. Como se tivéssemos fechado um pouco os olhos, para ver melhor (ou pior) – ou seja, para ver nele o que ali não está. Curiosamente, algo dessa obra-prima então se apresenta, se transmite, apesar de toda a limitação em sua reprodução. Ou melhor, algo traz de volta a aura do grande quadro do pintor espanhol, graças, justamente, ao fato de sua reprodução assumir-se como limitada e manipulada, além de um pouco borrada.
A aura está fora do quadro.







Aura e o instante
A aura não é simplesmente, para Walter Benjamin, a tradição, a autenticidade assinalando em uma obra seu pertencimento histórico. Ela marca “o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra”. Esse aqui e agora não é mais, obviamente, aquele do ritual, cujos resquícios ainda dariam à obra um caráter mágico no qual o valor de existência conta mais do que de exposição. Ele tampouco é aquele da exposição de As meninas no Museu do Prado, no lugar onde ela se encontra, em sala adequada à sua grandeza. Esse “aqui e agora” da aura designa um momento preciso e, no entanto, imprevisível: o do olhar. Ele se demarca da contemplação prevista institucionalmente, indicando que a experiência estática não se restringe aos lugares que a cultura lhe assinala. No campo do olhar, a encenação se assume em uma autocrítica: não se trata mais de quadro, mas de ganhar o espaço, de tornar-se arquitetura (a arte por excelência, a única que sempre existiu, como nota o filósofo).

O olhar dissemina-se no mundo, enquanto a contemplação estava confinada a lugares: a igreja, o museu. E no mundo, o olhar é móvel, incerto.




As formulações benjaminianas em torno da aura, como afirma o início do célebre “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, “põem de lado numerosos conceitos tradicionais – como criatividade e gênio, validade eterna e estilo, forma e conteúdo”, que poderiam, segundo ele, ser utilizados com fins “fascistas”. Os conceitos concebidos pelo filósofo, em contraponto, “podem ser utilizados para a formulação de exigências revolucionárias na política artística”, porque são dialéticos. Da arte, pode-se então pretender retirar uma reflexão que vá além dela e além do princípio, reacionário segundo Benjamin, da “arte pela arte”, para atingir elaborações sobre o homem e a sociedade.
Nesse sentido ampliado, o estético é sempre político, e é a aura – em sua crítica, ou na medida em que ela é pensada já em crise, só é identificada durante seu ocaso – que permite tal articulação fundamental. Mas devemos ir mais devagar, e voltar à própria definição desse conceito por Benjamin.
Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho.
A reprodutibilidade, expandida e bem-acabada graças à invenção da fotografia e do cinema, põe em declínio a aura como “existência única” e garantia de autenticidade da obra de arte. Isso é fato e constitui a leitura mais disseminada a respeito da aura, sublinhando um aspecto fundamental a toda produção artística do século XX até os dias atuais. Mas isso não é tudo. A sofisticada dialética benjaminiana aponta como fundamental à aura, como vemos no trecho acima, um caráter de “aparição”, implicando uma temporalidade própria: à aparição deve-se suceder um desaparecimento. Ou talvez haja um desaparecimento anterior à aparição, e esta seja sempre, mais rigorosamente falando, uma reaparição (apesar de única, a cada vez). A cadeia de montanhas que se observa em repouso, numa tarde de verão, já estava, sem dúvida, à nossa vista. Mas é de súbito que ela aparece, em sua qualidade aurática, ao nosso olhar. O instante em que isso se dá desdobra-se em um passado. Por mais perto que esteja, a coisa olhada faz-se distante, porque é perdida no momento mesmo de sua aparição.
É essa a sutil dialética convocada por Waltercio: ele opera sobre uma obra de “existência única”, aurática no sentido da tradição, para fazer dela uma ausência. A reprodução serve, mais do que ao propósito de “re-apresentar” a obra, para que ela seja evocada como perda. Reproduzir é fazer perder e, no entanto, no instante dessa subtração – ou um instante antes dela –, dá-se uma aparição única. Só em perda algo pode apresentar-se ao olhar; apenas à distância uma mera visão pode tornar-se aparição única. Essa é a temporalidade do olhar: só retroativamente, após o desaparecimento, uma vez estabelecida uma certa distância, acontece o instante aurático.
* Tania Rivera (Brasília, 1969) é doutora em psicologia pela Université Catholique de Louvain e integra o Departamento de Arte e o PPG em Estudos Contemporâneos das Artes da Universidade Federal Fluminense (UFF)

FONTE: Site da Editora Cosac Naify



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