Thomas Mann por Daniel Piza
Mann, o humanista
Escrevendo em 1952 sobre Émile Zola, que no célebre artigo Eu Acuso defendeu
o capitão judeu Dreyfus das acusações de espionagem, Thomas Mann (1875-1955)
lembra como um grande autor era capaz de provocar indignação e revoltar o mundo
e diz que “desde então o retrocesso ético tem sido terrível”. A humanidade se
tornou embrutecida, apática, uma multidão de “aleijões morais”. Muito antes, em
1929, descrevendo o classicismo de Lessing, o escritor alemão dá outro salto
para o presente e afirma: “Já fomos tão longe no campo do irracional”. A
modernidade vinha se tornando mais e mais avessa ao intelecto, às ideias, à
noção básica de sensatez. E é esse ponto de vista, de um humanismo que quer
assimilar as paixões e as pulsões, que une os ensaios de O Escritor e sua Missão (editora
Zahar), finalmente traduzidos no Brasil.
O livro serve não apenas para reafirmar a filosofia ética e
estética de Mann, mas também para registrar mais uma vez o papel do gênero
ensaístico para os grandes romancistas modernos. Como Mann, o que Proust,
Joyce, Kafka, Musil e os maiores prosadores do início do século 20 buscavam era
revigorar a narrativa de ficção com a densidade do pensamento, cada um a seu
modo. No caso de Proust, por exemplo, tratava-se de levar a crítica de arte (e
música e literatura) para dentro da mente dos personagens, a começar pelo
narrador. No caso de Mann, os diálogos dos personagens têm um grau de
articulação semelhante ao que se encontra em ensaios; um romance como Dr. Fausto contém verdadeiro tratado sobre música. Não
por acaso, no texto sobre Bernard Shaw incluído na coletânea, Mann nota que
seus personagens falam no palco como o ensaísta em público.
Os ensaios de Mann, dessa forma, dizem muito sobre os autores que
analisa e, ao mesmo tempo, sobre seu próprio autor, como, de resto, acontece
com os melhores ensaístas desde Montaigne. Por isso é fácil entender que o mais
longo dos textos seja, claro, sobre Goethe como Representante da Era Burguesa –
Goethe que aparece citado em diversos outros ensaios, sobretudo naquele sobre
Tolstoi. Afinal, toda a obra ficcional de Mann – de Os Buddenbrooks até
José
e Seus Irmãos, passando por Morte em Veneza e A
Montanha Mágica – é devedora justamente de Goethe e da literatura
russa, com doses fundamentais da filosofia angustiada de Schopenhauer e
Nietzsche. Sobre Tolstoi, por exemplo, diz que não tem a espiritualidade de um
Goethe, mas em compensação era capaz de “uma força narrativa sem igual”. Em
Dostoiévski acentua o caráter transgressor, o qual demonstra que a natureza
humana também se sente atraída pelo sofrimento e caos.
Saímos dos ensaios de Mann, ainda que não tenham o tom de críticas
literárias (são antes conversas eruditas sobre grandes autores), com visões
originais ou ao menos agudas sobre as obras. Quando comenta Ibsen, faz um
paralelo com Wagner para mostrar que o compositor fez pela ópera o que o
dramaturgo fez pela comédia de costumes: deu uma “feição perfeccionista e
amplificadora” a esses gêneros populares. Se diz que em O Lobo da
Estepe temos um Herman Hesse tão experimental quanto Joyce ou Gide,
sentimos vontade de reler o esquecido Hesse. E ao examinar a obra de um autor
bem distinto de si mesmo, como Tchekhov, apontando Uma História Enfadonha como seu conto preferido, nos faz
repensar o modo como o autor russo soube ficar a meio caminho entre esperança e
desesperança. Não há passagem obscura ou banal nos ensaios de Mann.
Não que ele chegue a definir uma “missão” para o escritor, já que
não tinha índole missionária; mas para o bom leitor algumas dessas páginas
bastam. Mann acredita que o papel do escritor é muito mais que contar histórias
(“as obras mais elevadas se contentam com um mínimo de ação”); é enxergar mais
a fundo a natureza humana; em outras palavras, é estético e ético ao mesmo
tempo. A “humanidade plena” consiste em buscar o equilíbrio entre racional e
sentimental, mas sabendo que esse equilíbrio é sempre instável, precário,
carente de revisão constante. No ensaio central sobre Goethe, em destaque, usa
o termo “burguês” não no sentido marxista, pejorativo (o empregador que explora
o trabalhador), mas no de cidadão urbano de classe média, que então significava
alguém dotado de um mínimo de responsabilidade e dignidade, ponderado, sóbrio,
laborioso, sem ser reacionário ou autoritário – como o próprio Goethe ou,
podemos acrescentar, ele próprio, Mann.
O que Mann exalta em Goethe, seu lado “não burguês”, é a crítica
ao filistinismo (a aversão natural do homem comum às sutilezas do intelecto, da
chamada alta cultura) e ao nacionalismo (que Mann observa que, na verdade, é
sempre provinciano) e, obviamente, a tradução disso em obras perenes, feitas
com a personalidade do gênio, cuja mente nunca está confortável no ambiente da
mediocridade geral. Genialidade é fazer obras que são ao mesmo tempo novas e
duradouras, é transformar a inquietude em grandeza por meio da obstinação. Como
no Aschenbach de Morte em Veneza, a abertura à paixão
não leva a lugar nenhum se o intelecto se abstém. A aventura mais determinante
é a do espírito; a ousadia que faz diferença é a do pensamento. Por mais
burguês e conservador que Goethe fosse em seu comportamento e suas opiniões,
sua criatividade não fugia aos desafios mais ambiciosos. De Mann, sem dúvida,
se pode dizer o mesmo.
Fonte: Site do saudoso Daniel Piza no Estadão
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