segunda-feira, outubro 26, 2015

Psicanálise e Violência




Corpo, Cidade e Violência.
Paulo Endo

Nós estamos acostumados a viver em cidades dicotômicas, que se consolidaram como cidades profundamente desiguais e que fracassaram completamente na tarefa de combinar e fazer conviver, no mesmo espaço urbano, todas as classes sociais, cores e vertentes sexuais distintas.

Raros são os lugares e os momentos em que isso é possível, mas quando ocorre, em geral, é o rico de penetra no mundo dos pobres. No carnaval, no futebol, no pagode, no funk. Jamais o pobre na vernisage, na recepção, no camarote, nas salas VIP. Que fique claro, a mobilidade é garantida ao rico, só ele tem direito a passar por pobre. Nisso se especializaram a maioria das metrópoles do Brasil e do mundo.

Há algum tempo atrás me lembro do debate acalorado sobre o embranquecimento de Michael Jackson, fãs furiosos expressavam sua revolta sobre o astro que não assume sua negritude, ou não valoriza suas origens e outras besteiras do tipo. Em meio a esse espetáculo midiático que até hoje o, nada santo, Michael Jackson é capaz de gerar, saiu um artigo que em minha opinião ia direto ao ponto. Ele alertava para o aspecto de que o que indignava fãs e não fãs de MJ até hoje, não é, evidentemente uma preocupação com sua integridade moral e sua fidelidade à sua origem negra e africana, mas o fato de um negro querer, e conseguir, ser branco.

Qualquer um branco pode ir à praia pegar uma corzinha. Quando, na volta da viagem, não faltam elogios: Nossa você ta preta! Elogio que cada um recebe com um secreto sorriso nos lábios.

Para o branco é a cor bronzeada, o dourado(dos reis) e a cor preta(o pretinho básico, sempre charmoso e fashion). Ficar escuro dá charme e incrementa o sex appeal.

Mas o contrário é visto como horror, doença, loucura. Coitado do preto que quer ser branco. Foi Arnaldo Antunes quem fez essa ótima reflexão.

O que está em jogo aqui, novamente, é a mobilidade. Vantagem extraordinária que só a riqueza permite. O rico pode ir de lá pra cá. Paris, Londres, África do Sul, Brasil, branco, preto, dourado, bronzeado. O pobre não, deve ficar na cozinha, ou na senzala.

Luis Eduardo Soares refletindo sobre “os condenados da cidade”, especialmente as crianças e adolescentes dos grandes centros urbanos brasileiros, seguinte tese:

Há os visíveis e os invisíveis. Os que são foco das câmeras, dos noticiários, das mídias, perseguidos para serem vistos, para tornarem-se visíveis, admirados, bisbilhotados. São as celebridades, personagens e vítimas da industria cultural. Os que devem sua existência a sua visibilidade. E que representam, talvez, um dos maiores anseios contemporâneos: dar-se a ver.

Há, de modo diverso, os que, embora absolutamente expostos, tornaram-se invisíveis. Deambulam pela cidade, interpelam-nos nos faróis nas calçadas, mas são invisíveis. Ninguém vê, ninguém quer ver, nem reconhecer aquilo como humano. Dói, desagrada, responsabiliza. São os pobres da cidade.

Sabemos o quanto o reconhecimento de si através do olhar do outro é fundamento da existência psíquica. Não ignoramos o quanto dependemos dos índices, dos sinais colhidos do olhar de outrem para afirmarmos, ou negarmos, em nosso cotidiano nosso espaço de possibilidades. Colhemos ali também os contornos de nosso corpo e as certezas, ainda que provisórias, sobre o que somos, mas principalmente, sobre o que podemos ser.

Freud nos ensinou a importância do reconhecimento pela mãe da existência singular da criança. Um olhar só para ela, um olhar que a destaque da massa, da multidão e que possibilita à criança existir para si, no mesmo momento em que existe para outrem. Um olhar onde se confere o estatuto da semelhança e da diferença.

É isso, e não outra coisa, que nos possibilita desenhar os parâmetros subjetivos, e um certo nível de certeza, de que existimos. Só existimos como singularidade. Nenhum psiquismo suporta a homogeneização na massa ou a indiferença embora o deseje, mas esse desejo do eu, sabemos, é também sua morte.

Como multidão ou como objeto o eu se desvanece, privado de investimentos amorosos num olhar que o ratifique e que lhe confere alguma duração, livrando-o da experiência insuportável do desaparecimento.

René Spitz, psicanalista inglês, foi o primeiro a demonstrar que bebês recém-nascidos, bem vestidos, bem alimentados e protegidos das intempéries, mas privados desse investimento narcísico que ampara e reconhece neles alguma singularidade, podem fracassar em sua tarefa de viver. Bebês institucionalizados, sem auxílio e cuidados onde seja possível estabelecerem-se relações objetais relativamente estáveis, podem ficar ocos, esvaziados de atividade psíquica que, no caso do bebê humano, é o que lhe possibilita viver, desejar, prosseguir vivendo em direção ao futuro como lugar imaginário onde o eu se vê existindo para além do instante e do imediato.

Os pobres na cidade ao frequentarem (indevidamente) as zonas ricas padecem de invisibilidade, de reconhecimento e do investimento alteritário que possibilita todas as trocas simbólicas, linguageiras e humanas. Pobres não têm direito à mobilidade. De casa para o trabalho, do trabalho para a casa.

Uma criança, um adolescente pobre nas ruas de São Paulo, imerso na indiferença realça seu aspecto empobrecido e carente para, pelo exagero, fazer-se visível. O resultado é mais desastroso. Diante da insistência o pobre, pedinte, mendigo é punido com o silêncio e com o ódio. É deslocado da indiferença para ser odiado.

O invisível que insiste para ser visto é punido com ódio, raiva, desgosto.

Quem quer que tenha experimentado a experiência do ódio continuado, da indiferença ostensiva e do desprezo flagrante sabe que tal experiência é, humanamente insuportável.

Há, todavia uma reação da criança, do adolescente pobre nas grandes cidades que surpreende por sua eficácia: a arma em punho e o potencial violento como ameaça.

O pobre com a arma na mão tem restituída de forma imediata, porém negativa, sua visibilidade. O medo que ele provoca dilui o ódio e a indiferença e, pela porta dos fundos, ele chega à sala. Passa a figurar nas páginas da mídia impressa, em todos os programas televisivos e na retina do cidadão ameaçado.

A invisibilidade experimentada no cotidiano citadino, pelo pedinte, morador de rua, mendigo ou carroceiro é imediatamente revertida. E então, como criminoso, o sujeito é reconhecido, e como tal, respeitado.

Esta tese nos interessa para evidenciar a importância crescente que políticas públicas que lançam mão de estratégias como educadores de rua, centros de referência públicos, serviços de atendimento, acolhida e abrigo têm e, queiramos ou não, isso também se aplica às escolas.

Tais políticas públicas, precárias ou não, são, muitas vezes, a única possibilidade de intervenção singular, de reconhecimento alteritário que o sujeito pobre tem nas áreas centrais ou periféricas da cidade. Mas uma vez que ali mesmo elas são indiferenciadas, descuidadas e esvaziadas passam a ter a violência como resposta.

Os mapas que hoje indicam que a condensação de respostas violentas a diferentes conflitos na cidade estão concentradas nas áreas baldias e pobres, onde a criminalidade também se aloja e cria o seu pelotão de reserva.

Em debate que realizamos no âmbito da extinta Secretária do Menor há num trabalho que acompanhamos há quase uma década atrás 4 verificamos, e denunciamos o fracasso de políticas públicas que pretendiam barganhar, com crianças em situação de rua e risco, casa, comida e roupa lavada nas instituições de atendimento público, em troca da rua.

Muitos, ingenuamente, ficavam estupefatos ao observarem que as crianças recolhidas aos equipamentos públicos, com relativo conforto e total segurança retornavam às ruas em questão de horas.

A criança voltava para rua em busca de seus pares. Atemorizava a criança permanecer numa instituição qualquer em situação de anonimato e massificação. Ela ficava amedrontada diante da possibilidade de vir a ser mais um igual a tantos. Queria ser reconhecida por seus parceiros de rua, onde tinha nome, apelido, respeito e afeto, embora, sabemos, corre-se risco de vida.

Ainda assim, não há outra possibilidade de interpelar esse processo que não seja por via da ação pública. Há muito os pobres se tornaram questão pública, já que jamais será questão privada. Ou seja, jamais o não consumidor será assunto para o capital, as empresas e a tão propalada iniciativa privada. 

De outro lado o que é público no Brasil ainda é sinônimo de coisa para pobre. A oferta do Estado como migalhas para os famintos. E aqueles que trabalham nos escalões inferiores da área pública ainda são, de algum modo, identificados como pobres em todos os sentidos ( o famigerado funcionário público).

Para os do alto escalão do governo a situação é inversa: figuram como celebridade, são os ricos do poder. (altos escalões dos três poderes: executivo, legislativo e judiciário).

Paralelamente temos nas últimas décadas o advento das ONGs. Hoje mais de 200.000 de todas as cores raças e credos. Nunca tantas informações sobre DH foram geradas como nos últimos 4 anos e, no entanto, essa avalanche de informações não foi suficiente para consolidar uma política nacional de efetivo respeito aos direitos humanos.

Devemos reconsiderar e especificar a importância das ONGs, reconhecendo diferenças fundamentais entre elas e cobrando delas o fortalecimento, e não o enfraquecimento da esfera pública, da efetivação das políticas de governo e do papel do Estado. Elas não são, portanto a panacéia capaz de fazer do Brasil um estado democrático de direito, embora tenham nisso um papel fundamental.

Devemos por isso apostar todas as fichas na escola pública no momento em que um dos únicos equipamentos públicos que efetivamente chega até o pobre é a escola, além da polícia. Contradição extrema que já levou muitos de vocês a bater boca com policiais que intentavam entrar na escola para enquadrar algum aluno.

Na escola pública, e sei que agora estou falando com especialistas, é talvez o único lugar que ainda pode promover sem hipocrisia o convívio entre diferentes na infância e adolescência.

Nas escolas privadas do ensino fundamental e médio não encontramos nem negros, nem índios, nem pobres e raríssimos nordestinos. Essas escolas fracassaram na promoção desse convívio e é importantíssimo, em minha opinião, denunciar isso.

Quem leu a importante biografia de Esmeralda, menina moradora de rua que foi atendida fragmentariamente por equipamentos públicos e ONGs de plantão na cidade, percebe o processo de singularização que a leva a desejar contar sua própria história. Tratava-se de reconhecer, testemunhar sua história tornando-a crível, verossímil e exemplar para si e para outros. Esmeralda descreve uma trajetória épica que tem como objeto, primeiro sua sobrevivência, depois sua constituição enquanto sujeito e cidadã.

Ela precisava narrar suas experiências como testemunho já que no limite, as violências e experiências vividas por Esmeralda beiram o ficcional. O que nos lança a pergunta quando a lemos: Como um ser humano foi capaz de suportar isso?

Mas Maurice Blanchot já nos chamou a atenção para o fato de que o ser humano não pode ser desfigurado ou destruído e é por isso as atrocidades para desfigurá-lo, desumaniza-lo, não tem limites.

De fato esse material produzido por Esmeralda tornou-se um dos poucos testemunhos, de crianças e adolescentes na cidade de São Paulo, onde podemos acompanhar, detalhadamente, as formas de segregação, assistência e acolhimento na cidade de São Paulo.

Lembro-me da experiência na Secretaria do Menor, onde educadores espalhados pelo centro da cidade faziam um certo cordão de isolamento aos meninos moradores de rua. Eles chegavam em geral antes da polícia e recolocavam a criança no circuito do atendimento em meio aberto. Forma explícita de resistência urbana no âmbito de uma política de governo.

Fazer trabalhar os dados
Duas observações iniciais antes de apresentar um repeteco de dados, que já nos cansaram um pouco, mas continuam sendo fundamentais como ponto de partida para a necessária depuração da imensidão de dados a que hoje temos acesso.

Laymert Garcia nos chama a atenção para uma mudança estrutural na qual estamos imersos. Estamos num período em que as máquinas energéticas, perderam claramente o espaço e sobra o interesse frente às máquinas informacionais. Isso foi precedido pela perda da importância do corpo do trabalhador braçal que migrou para os serviços e que foi, em parte substituído em território urbano pelas máquinas.

Desse modo como já dizia Robert Kurz há mais de uma década atrás, o miserável não gera interesse sequer em sua utilização como mão de obra barata. Discurso presente nos anos 70 e 80.

Ou seja, seu corpo acéfalo não interessa mais na cadeia da produção porque o corpo é muito mais ineficiente e caro do que a máquina do ponto de vista da rentabilidade física de seu trabalho.

Assim aquele corpo que se oferecia ao uso e abuso no chão da fábrica, digamos assim, não é de modo algum necessário. O chão da fábrica lentamente se despolitiza.

De outro lado vemos a era informacional em sua fase entediante e limite. Isto é temos, num click, uma quantidade de informações imensa que vão parando no meio do caminho com entulho, coisa estragada ou objeto sem uso algum. As informações chegam aos montes, mas elas não modificam uma linha em nossa capacidade de agir e em nossa capacidade de transformar nossa sociedade no seu aspecto mais crônico e doentio: sua profunda desigualdade.

Ou seja, a quantidade de informações a que temos acesso não transformaram em nada nossa capacidade de agir coletivamente em função de um benefício coletivo e público, bem como foi incapaz de alterar o diagrama assimétrico que caracteriza todas as grandes cidades.

As informações então, hoje sabemos, não são nada sem trabalho árduo e profundo sobre elas, de modo que qualquer trabalho superficial sobre as informações devolvem-nas para o caldo grosso da indiferenciação, onde nenhuma informação é mais importante que a outra.

Vejo nesse ponto um papel absolutamente central do professor. Como aquele profissional que ainda seleciona os pontos relevantes da informação e os faz trabalhar. Desmitificando o acesso puro e simples da informação que nos assola. Nesse sentido é que falamos dessa resistência necessária de pais e professores contra a mídia e os valores avassaladores do mercado. Um trabalho de guerrilha, é verdade, e que sem qualquer um dos vértices (pais ou escola) está fadado ao fracasso.

Uma outra imagem interessante é a da informação como sujeira. Imagem que recolho da reflexão de Flávia Schilling sobre a corrupção. A quantidade de informação não processada se torna uma sujeira. Coisas acumuladas e sem uso que nos impõe compromisso e non-sense. Temos o dever de mexer naquela bagunça, mas a sensação é de impotência. É necessário um trabalho de depuração constante para que objetos não se tornem entulhos e os lugares apenas sujeira.

Vejam então que da mesma forma como a informação tornou-se irrelevante e passível de ir para a lixeira, a tradução de pessoas em números(estatísticas) pode ter o mesmo fim se não forem colocados ao lado delas sua dimensão mais singular e, como tal, humana.

Voltaremos a isso para falar então do corpo do pobre, do miserável, indigente, pedinte e mendigo.

Vamos então a alguns dados bastante conhecidos de todos nós e procuremos fazê-los trabalhar. Todos esses dados foram amplamente divulgados pelos relatórios de Direitos Humanos, por várias mídias e revistas especializadas. Vejam o seguinte pacote :

 - No Brasil mata-se por ano, em estado de “normalidade democrática” cerca de 50.000 pessoas, como comparação podemos citar a guerra do Vietnã que em 20 anos de guerra civil que levou 55 mil soldados americanos.
- Nos últimos 25 anos, meio milhão de pessoas foram mortas por arma de pequeno porte no Brasil(desde 2005), sendo o Brasil um dos maiores fabricantes desse tipo de arma no mundo.
- A violência brasileira mata mais do que guerrilhas endêmicas como as da Colômbia.
- O formidável progresso na área de educação e saúde no Brasil, que reduziu drasticamente os índices de mortalidade infantil foi praticamente anulado com o crescimento do homicídio entre crianças e jovens entre 0-19 anos.
- Entre 1980-2002, do total de 110.320 de crianças e adolescentes mortos por homicídio no Brasil, 59% o foram por arma de fogo.

Essas notícias, esses diagnósticos tem para nós utilidade incerta: ao mesmo tempo em que diagnosticam e apontam uma situação dramática e epidêmica, alertando para seu caráter urgente e intolerável, geram também perplexidade e redobram o medo e o imobilismo na sociedade civil.

Este roldão de dados, disparados por organizações competentes do Brasil e do mundo para assinalar a gravidade numérica das nossas violências, adquirem ano após ano uma importância cada vez mais atenuada e a certeza de que, afinal, somos mesmo um país, e quiçá, um povo violento.

Os números nos inebriam construindo em torno de nós, uma aura estranha que nem nos protege e nem nos auxilia a compreender. Nos lançam a comparações absurdas e longínquas e, sem perceber, massacram as esperanças do cidadão comum que não sabe como ponderar esses números, e menos ainda, como utilizá-los.

Como compatibilizar o crescimento de homicídios entre crianças e jovens no Brasil com a diminuição dos índices de homicídio em São Paulo?

Ou o sucesso da campanha do desarmamento que retira de cena mais de 400.000 armas de pequeno porte ao lado da produção maciça de armas de pequeno porte pela indústria brasileira, que relança no mercado novamente quase 500.000 armas de pequeno porte por ano?

Na verdade, essa avalanche de estatísticas que são produzidas como orientadoras de qualquer política pública, de qualquer estratégia em larga escala, para o cidadão que tem seu cotidiano atravessado pela iminência da violência, abrupta, traumática e completamente desregrada, soa como mais um sinal crônico de uma doença insuperável.

O Brasil parece ser uma equação com resultado zero. Mais uma nuance genérica e contraditória do nosso caráter que termina por se espatifar no esquecimento e na impotência.

Os números desenham o paradoxo e radicalizam os problemas brasileiros. Não se trata, hoje sabemos, de obter números mais ou menos alvissareiros. Trata-se de constituir um plano de manutenção dos resultados imediatos a serem obtidos no longo prazo. O problema brasileiro não é a emergência desse ou daquele resultado promissor, mas a manutenção de políticas capazes de fazer desses resultados mais do que fogos de artifício.

Aliás, esse risco o político profissional brasileiro capturou muito bem. Com medidas de impacto imediato é possível fazer os números caírem, até a próxima votação. Tira-se os caminhões de circulação e o trânsito melhora no dia seguinte (tantos por cento, tantos kilometros) porém qual é a política de engenharia de trânsito que manterá esses índices em queda com a entrada de 1000 novos veículos por dia na cidade de São Paulo.

A miséria diminuiu com os programas de assistência do governo, mas qual será a estratégia de promoção de emancipação política dos que hoje são completamente dependentes da assistência governamental e qual a proposta para desmanchar de forma gradativa e resoluta a formação desses novos currais eleitorais.

No que tange aos índices de violência sabemos que os dispositivos da violência cotidiana já se tornaram gêneros de primeira necessidade.
Façamos então um exercício de interpretação desse conjunto, apontando para uma instrumentação desses dados, voltando a dar-lhes importância na medida em que pudermos perder a reverência e o preconceito epistêmico contra eles.

Mas também, e ao mesmo tempo, insistindo em reconhecer nesses números apenas indícios, sinais, sintomas de uma problemática mais complexa e só inteligível a partir de um trabalho detalhado e interpretativo. Trabalho esse que exige, justamente, a voz singular das violências que acontecem na cidade e no corpo do cidadão. Sim porque é no corpo do cidadão (ou do não cidadão) que toda violência incide. É sobre o corpo que serão cobrados todos os débitos advindos das desigualdades sociais extremas, da ausência de políticas públicas, da ineficiência do estado, da falta de acesso à justiça e aos direitos fundamentais.

Voltemos então ao primeiro dado que eu apresentei a vocês há pouco:

No Brasil mata-se mais do que em Estados em situação de conflito armado. O Brasil tem índices de letalidade maiores que os da Colômbia, maiores que os da Bósnia quando vivia situação de conflito aberto e maior que os índices que figuraram na guerra do Vietnã ou o conflito Israel/Palestina. Esta afirmação está procurando evidenciar o paradoxo e o absurdo de uma constatação comparativa como essa. Entretanto é preciso arrastar esses dados para outros tempos e lugares.

O Brasil evidentemente não está em situação de conflito aberto com outra nação. Têm, entretanto, um índice tão alto como o de países que tem uso beligerante de armamentos sofisticados com alto poder letal, de soldados armados cuja função não é outra senão exterminar o adversário, mas também contam com graus de proteção compatíveis com essa exposição. Blindagens de todo tipo, esconderijos, trincheiras e cavernas são elementos indispensáveis numa luta armada. A atenção e todos os recursos materiais, psíquicos e intelectuais estão voltados para a sobrevivência onde, teoricamente, a proteção aos civis está entre os acordos dos países beligerantes. Essa é uma das razões pelas quais Osama Bin Laden, o homem mais procurado do mundo, continua vivo até hoje.

Aqui uma primeira diferença que me parece fundamental, vou trabalhá-la me remetendo a outro dado numérico apresentado acima: pesquisa recente aponta um índice mundial de 600.000 mortes anuais no mundo pelo uso de armas de pequeno porte, onde o Brasil é responsável por 8% dessas mortes. O comentário que irá ainda nos ajudar é : “são essas as verdadeiras armas de destruição em massa do planeta”.

As armas de pequeno porte que também têm uso numa guerra têm, no entanto, no Brasil, uso disseminado em situação de paz. São utilizadas por nossas polícias, mas também pela sociedade civil que a têm utilizado para a solução de pequenos conflitos. Brigas com o vizinho, desentendimentos no trânsito, altercações num bar que podem provocar o uso de uma arma que se porta a tiracolo levando a um desfecho letal. Esse uso, portanto, está preferencialmente voltado para a sociedade civil, para um outro individuo desarmado, ou que não teve tempo de sacar a sua própria arma.

Indivíduo que, ao sair de casa pela manhã, na imensa maioria das vezes, não saiu priorizando sua sobrevivência e, portanto, quando for alvejado, estará, de algum modo, despreparado. Salvo em rivalidades explícitas entre pessoas e gangues.

O inimigo estrangeiro que em certos países europeus revela-se no imigrante, refugiado ou asilado no Brasil é o jovem adolescente, pobre, desempregado e de baixa escolaridade, entrincheirados nas favelas.

Os inimigos internos no Brasil são os pobres e são eles que são alvo privilegiado dos homicídios e pela violência praticada pelo Estado.

Uma importante pesquisa realizada pela Ouvidoria de Polícia do Estado de São Paulo no ano de 1999 demonstra que: 

Do total de pessoas mortas pela polícia nesse ano 56% não tinham antecedentes criminais, eram réus primários, e 51% foram encontrados com perfurações nas partes posteriores do corpo, o que sugere que foram mortos em fuga ou, no mínimo, sem condição alguma de defesa, contrariando as justificativas policiais que sugerem morte em situação de confronto ou, nos termos da polícia, “resistência seguida de morte.”

Trata-se, portanto de um conflito secreto que leva os pobres a levarem a pior durante séculos no Brasil.

Não há nenhum absurdo e nenhuma novidade nisso. É infinitamente mais fácil alvejar um cidadão desarmado, ou despreparado diante da ameaça, do que um soldado em guerra. No Brasil está-se a caça dos desarmados, dos desprevenidos, dos inofensivos, dos pobres. É preferencialmente nesses corpos que incide o desmando e o Estado, que numa guerra é clara e ostensivamente o responsável, numa situação como a nossa parece ser sempre o último a saber.

Há um pacto entre o Estado e a sociedade civil que faz dos próprios concidadãos suas principais vítimas. Por isso o despreparo, a vulnerabilidade e a facilidade em matar revelam uma dinâmica onde todos são inimigos e todos podem ser atingidos de algum modo. O inimigo mora em nossa casa disseminando angústia e insegurança. O inimigo é impreciso, indeterminado e inconfessável. Estranho e familiar, próximo e distante, tolerado e odiado. O inimigo é cordial.

O silêncio, a omissão da população civil em relação aos crimes bárbaros que ocorrem no interior das penitenciárias, nas FEBENs ou mesmo nas ruas da periferia paulistana atestam uma fratura no exercício da democracia por parte da população civil, na medida em que esses lugares têm se consagrado como exemplos incontestes de privatização do espaço público que os agentes do Estado, com arma ou porrete na mão, procuram exercer.

Permite-se nesses lugares todo tipo de arbítrio e violência, como se fossem lugares privados, onde as leis não se executam, a não ser sob sua forma negativa e onde vigora o estado de exceção.

Para alguns pensadores brasileiros como Paulo Arantes e Chico de Oliveira, vivemos hoje em estado de exceção permanentes.

Porque então a criança e o adolescente nascido e criado nos espaços de exceção da cidade, zonas de alta vulnerabilidade social, não deveriam fazer uso da arma? A arma para vários setores da sociedade civil paulistana tornou-se um meio, uma forma de privatizar o público, de fazer prevalecer a própria vontade, o próprio desejo sobre o outro, ameaçando-o e forçando-o a abdicar inteiramente daquilo que antes era objeto de partilha ou disputa.

O que Caco Barcelos afirmou dizendo que “a polícia é o braço armado da sociedade civil” se evidencia e continua valendo no uso que tanto nossas polícias quanto a população civil faz da arma, quando a tem nas mãos.

Se a arma tornou-se objeto de desejo, objeto de força e expropriação numa sociedade profundamente desigual, como poderia não atrair as crianças pobres e negras posicionadas na escala mais inferior, mais subalterna e desassistida da sociedade brasileira? Como poderia não ter se tornado um fetiche? Uma extensão adquirível do próprio corpo e do próprio narcisismo que resulta em mais poder, em mais “igualdade”, expresso por todos os bens de consumo que, com ela na mão, se pode adquirir?

Nesse sentido a campanha do desarmamento toca num assunto fundamental: queremos ser reconhecidos a qualquer custo em nossos medos, desejos e necessidades. Com arma na mão é mais fácil.

Sabemos qual o papel traumático que a privação constante gera. Não ter nunca nada, se não leva o sujeito à comiseração depressiva e melancólica, a um estado de imobilismo e descrença em suas próprias percepções, ações e esperanças, conduzem à crença do tudo ao mesmo tempo agora. A impossibilidade constante de ter, possuir, deixa em qualquer um a sensação do engodo, do embuste. Não cumprimento de promessas permanentemente adiadas.

A experiência da promessa não cumprida é como que comprovada nos corpos doentes, em andrajos, desprotegidos dos ruídos das ruas, expostos em sua feiura e degradação. Para estes nenhuma promessa jamais se cumprirá. São justamente os menos visíveis que permanecem mais tempo expostos, nas ruas, onde viabilizam sua subsistência. Onde resistem para existir, como costuma dizer Pe. Júlio Lancelotti.

Devemos notar que as crianças e os jovens entre 15 até 24 anos são vítimas preferenciais das mortes violentas que predominam no Brasil, são eles que se deparam, a partir da experiência concreta com todos os elementos que forjam uma das economias mais desiguais do mundo, com a falta radical que a desigualdade produz. Falta de todos os bens mais elementares. Bens que revelam a maior ou menos inclusão daqueles que podem ou não usufruir deles e ostentá-los.

O conforto tornara-se tão valorizado como elemento de ostentação sobre os desiguais, que o próprio criminoso jovem visa arrancá-los com a arma na mão adquirindo roupas, tênis, relógios e bens de marca realizando a mimese, que perfaz a semelhança entre ricos e pobres enquanto dura o produto. Marcas como logotipos da inclusão, do poder de adquirir e permanecer visível socialmente, num mundo altamente valorizado pelo seu poder de aquisição. Não há, muitas vezes, para o jovem e a criança pobres elementos de valorização sustentáveis em sua triangulação com a família e a cultura.

O jovem que ama sua família, entretanto, frequentemente não a admira, não pode reconhecê-la no horizonte de seus próprios ideais, não só porque ser parte de sua família lhe impõe uma vida excessivamente limitada, em função das exigências que essa mesma cultura lhe exige, como também a subalternização na rua, no trabalho, na escola aparece como única maneira de manter as coisas como estão.

Assim tornar-se honesto e trabalhador, projeto já bastante custoso, torna-se desvalorizado quando a honestidade e o trabalho têm como consequência a precariedade e a humilhação. É essa conjuntura mutilada que convive com a oferta imediata e oportunista do crime e que, entre outras coisas, o revólver torna possível.

A usurpação da identidade burguesa, do consumismo burguês, do pior da burguesia - “ser alguém na vida”- passou a ser um projeto de longuíssimo prazo, mas possuir as coisas desse alguém é uma ambição abreviada que pode ser satisfeita imediatamente.

A situação certamente seria muito pior se muitos desses jovens e crianças que ainda fazem malabares nos faróis, vendem doces ou simplesmente mendigam soubessem que, concretamente, eles não têm nenhuma chance de “ser alguém na vida” salvo por efeito de uma situação extraordinária.

Últimas considerações
Por fim, vamos fechar então esse parêntese salientando então três aspectos da violência que considero importante frisar nesse momento:

O primeiro diz respeito à necessidade metodológica de trabalhar como os dados obrigando-os à inteligibilidade, forçando-os a dizer mais do que o óbvio, o que, na verdade, sempre dizem. Mas não são só os dados que podem, e devem, ser articulados com os pontos de interrogação, com as perguntas que eles próprios permitem fazer; isso também ocorre com as imagens violentas, com as teorias e notícias sobre a violência e mesmo com os testemunhos.

O segundo aspecto diz respeito aos elementos subjetivos, narrativos, testemunhais aos quais devemos, eu diria, submeter, os saberes sobre as violências. Ou seja, é preciso que saibamos e compreendamos as motivações que fazem uma criança segurar uma arma, arrombar um carro, matar uma pessoa e que fazem o cidadão de classe média silenciar diante de massacres, chacinas e atrocidades que ocorrem na porta de sua casa, e que imagina, são os mesmos que lhe fizeram e podem lhe fazer mal.

Resulta extremamente problemático o apoio maciço da sociedade civil a práticas abusivas e violentas, que ao final, se voltam contra essa mesma população e classe social. Não houve avanço significativo da sociedade civil em relação à compreensão da complexidade dos mecanismos que engendram as violências. Ainda o melhor remédio contra as violências é a violência.

E o terceiro aspecto é a necessidade imperiosa de pesquisar permanentemente as razões e o sentido de estarmos aterrorizados em nossa cidade, sabendo que nosso terror pode e é instrumentado como alicerce de ações assassinas e genocidas por parte do Estado, que não tem outro efeito senão o de espalhar o terror como álibi para a matança. De nosso terror parte as autorizações para o que Everett Hughes denominou de “trabalho sujo”.

Para terminar eu queria lembrar Maurice Blanchot  que em sua obra “A escritura do desastre” posiciona a palavra diante da violência como tarefa. Definição simples que devemos encarecer. De certo modo diante da problemática que necessariamente tem de se colocar entre a violência e a linguagem, seria mesmo necessário avançar para além do que já pudemos compreender com a conhecida afirmação: onde há violência não há linguagem.

Se por um lado reconhecer essa oposição entre uma e outra contribui para denunciar o aspecto incomunicável das violências, o aspecto da sua força que repousa no corpo; por outro não devemos esquecer de que nada deixa tantos rastros de linguagem quanto às violências. Tantas falas esparsas, tantos discursos reconhecidos, tantas queixas incompletas.

- Esse trabalho foi apresentado no CEU Butantã em agosto de 2008, no âmbito do Projeto Direitos Humanos nas escolas coordenado pelo Professor José Sergio Fonseca
- Paulo Endo:  Psicólogo, Psicanalista, Doutor em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da USP, Pesquisador CEBRAP/CAPES, Pesquisador colaborador do Laboratório de Psicanálise e Sociedade do IPUSP.

Fonte: http://www.dhnet.org.br/educar/textos/paulo_endo_corpo_cidade_violencia.pdf




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