IMAGEM E REFLEXÃO: O CORPO
NA DOR
São
os corpos que têm uma alma, não são as almas que têm corpos porque o corpo é o
princípio da alma e não a alma o princípio do corpo, o corpo é uma alma e não a
alma um corpo são os corpos que são almas e as almas não são corpos ... A.
Artaud (Cahiers de Rodez, 1983)
1. Proposta de reflexão: corpo e imagem
A
imagem assume no panorama artístico uma força relevante, e não podemos negar
que sua principal força expressiva está na abordagem do corpo, especialmente o
corpo submetido à experiência dolorosa. É neste espaço, a meu ver, que a imagem
contemporânea ganha força como lugar de reflexão sobre o corpo. Trata-se de dizer
que em nenhum período, mais que o contemporâneo, percebeu-se uma reivindicação
tão forte e consciente da experiência corporal como norteadora de nossas
reflexões através das imagens. O corpo está exposto aos nossos olhares. O corpo
desencadeia o enclave existencial dos fluxos existenciais e assume uma
capacidade discursiva através da imagem, que pode ser pensado por inúmeros
ângulos. Observamos que o corpo que reivindica força nessa imagem é o corpo da
dor do Outro. Assim, ao pôr este corpo “dolorido”, a imagem institui uma
reflexão radical, frente ao qual fazem-se nulos todos os nossos hábitos de
pensá-lo. Trata-se de dizer que o corpo “dolorido” que a imagem fotográfica
apresenta-nos é um corpo que está para além de nossa interpretação, por não se
constituir como um corpo que habitualmente desejamos ver ou pensar. O corpo
reflexivo é, portanto, o corpo Outro, o corpo exposto à dor, situado no espaço
do corpo do Outro, e que, como tal, e especialmente por isso, funda uma
reflexão.
A
presente constatação coloca-nos diante do problema da representação. Parte da
abordagem da imagem na fotografia, na contemporaneidade, ao se ocupar da
realidade como “catástrofe”, escapa à nossa representação pelo excesso, quando
faz do corpo seu objeto de imagem, e faz da imagem um excesso de significado.
Ou seja, estamos diante da indagação: como “dizer”, como representar algo que
transborda nossa capacidade de imaginar e representar? O excesso torna abismo
todos os nossos conceitos e, portanto, desarma nossa capacidade de pensar. No
pensamento de Blanchot (2001) e de Levinas (1967), o excesso funda um conceito
complexo e, a propósito de síntese, define-se como Infinito. Constatamos a
experiência com o Infinito, explica Levinas (1967, p. 209-211), quando estamos
face a face com o “absolutamente Outro”, diante do qual “já não posso poder”,
ou seja, a presença de quem toda medida de estranheza nos é dada. O excesso é o
estranhamento posto pelo diferente. Estamos diante da obscuridade radical em
que algo nos confronta, não se deixa possuir, e que, segundo Blanchot (2001, p.
95), nos leva a dialogar com o inominável. O diálogo com o inominável é um
diálogo alimentado pelo Desejo que torna seu objeto de atenção cada vez mais
desejado, em virtude da impossibilidade de capturá-lo através de uma
intencionalidade. Na proposta do presente texto, essa imagem infinitamente
Outra, imagem do excesso, que se põe para nossas reflexões, instala-se de
imediato pelo corpo, mais especificamente o corpo da dor do Outro. É, portanto,
a imagem do corpo dolorido que propomos pensar como imagem reflexiva em si
mesma. Trata-se de dizer que a imagem fotográfica funda a reflexão, ou institui
um pensamento radical de um corpo Outro, o corpo da dor, como corpo de
reflexão. A imagem é reflexão. É, portanto, a partir desse viés que podemos
pensar as imagens fotográficas de Sebastião Salgado, fotógrafo escolhido, como
imagens fundantes de uma reflexão sobre o corpo diferente. Partindo de uma
abordagem fenomenológica da imagem, pela observação de sua força na contemporaneidade,
pretendemos pensar as imagens de Salgado como fundadoras de um pensamento sobre
o corpo, ou seja, constatar a imagem como essencialmente promotora de um
absolutamente Outro, que se oferece ao nosso olhar.
O
corpo da dor: imagens do absolutamente Outro
No
texto Uma ética do sofrimento, citado no livro de Sánchez (2000, p. 138-139),
Levinas diz que:
El dolor se resiste a ser contenido en la
manera de los otros hechos psíquicos, y toda tentativa por atrapar el dolor es
un fracaso. El dolor es un contenido que rehusa ser contenido [...] es
simplemente el momento donde hay una negación de la conciencia [...] es la
negatividad de la conciencia.
A
dor para Levinas é um excesso em que a consciência é excedida, transbordada,
tornando-se uma debilidade que rompe com o corpo-eu no mundo. Ela é negação ou
ruptura da consciência, a interrupção de uma consciência encarregada de
configurar a cotidianidade do corpo, de colocá-lo diante de uma configuração de
entrelaçamento com o mundo. A dor infere a imagem de um corpo que desfigura o
corpo “harmônico” com o mundo, corpo mantenedor da ordem das coisas, em que
todo um cotidiano harmônico salvaguarda o que está instituído como ordem dentro
da sociedade. O corpo na dor desinstala-se desse contexto, seja ele pela dor
inferida pela doença, ou pela dor social do abandono, que induz à fome, ao
desamparo, à miséria e às guerras. Falamos de um corpo que assume uma conotação
de representação de excesso, ou seja, como consciência de um corpo que se põe
como questionador de um lugar no cotidiano de nossa existência.
Assim,
indagamos: em que espaço, dentre todos os que nos são oferecidos, podemos fazer
uma experiência essencial com este corpo diferente, senão através do que deles
nos vêm pelas imagens? São as imagens, por excelência, espaços de reflexão do
corpo? São, tais imagens, Dizeres sobre o corpo que ultrapassam a possibilidade
de serem simplesmente Ditos, a fim de nos colocarem diante da morte?
A
proposta delineada através deste ensaio aposta na ideia de que as imagens são
propriamente a força do enigma do corpo na dor do Outro, dado o modo com que
nos confrontam e nos impõem uma relação com o inominável. As imagens inferem a
radicalidade do pensamento e constatam a impossibilidade da intencionalidade
diante de um corpo diferente. Realizam em si mesmas essa impossibilidade
radical, ou o Infinito, e questionam o lugar de nossa existência. Inferem o
corpo dos “escombros” que nos induzem a uma cotidianidade “desnarrativizada”,
ou seja, em que os valores imperantes sobre o corpo, e, consequentemente, sobre
o corpo-eu são questionados. Isso porque o corpo na dor recolhe-se sobre si
mesmo e já não entende mais o mundo como possibilidade de diálogo. O corpo na
dor está, podemos dizer, impossibilitado de ser. Ser é ter um corpo-eu. As
imagens nos dão a dimensão dos escombros de corpo-eu. São as imagens que nos
possibilitam estar diante do abismo da representação, quando nos apresentam a
existência de um corpo “outro”, demasiado humano para suportarmos. Corpos que
insistem em fugir da proposta de pensar que: “Um corpo humano está aí quando,
entre vidente e visível, entre tocante e tocado, entre um olho e outro, entre a
mão e a mão se produz uma espécie de recruzamento [...]” (MERLEAU-PONTY,
2004, p, 18). Portanto, ser corpo, ou ter um corpo é “estar atado a
um certo mundo” (MERLEAU-PONTY, 1994, p. 205), ou
seja, estar aderente a este mundo, fazendo, de cada gesto, “carne”.
A
imagem fotográfica de Sebastião Salgado, a meu ver, denuncia a ausência do
entrecruzamento em que o gesto se faz “carne”, inferindo a respeitabilidade
diante da dor do Outro, não porque a compreenda, mas, justamente, porque
percebe esse corpo em descompasso com os outros corpos. O corpo das imagens
fotográficas torna-se, no descompasso, obscuridade significativa. Assim, a
imagem corrobora para que, através da representação do corpo na dor, o Outro
adquira a condição de ser e instaura uma reflexão. Diga-se, é no estranhamento
diante da imagem que reelaboramos o pensamento sobre o corpo-eu e, por
consequência, vemos a derrocada de um pensamento sobre o corpo, que se
instituiu centrado no corpo idealizado, sagrado, harmônico. A imagem do corpo
na contemporaneidade caracteriza-se pela representação do corpo à beira do
abismo.
O
abismo é esse lugar do qual não podemos falar com clareza. O abismo é o enigma,
o mistério, e como tal está impregnado na nossa problemática relação com o
corpo na história humana. O corpo é esse lugar do qual não podemos escapar, que
marca nossa história na existência. O corpo está onde o Eu “habita”. O texto de
Levinas, Algumas reflexões sobre a
Filosofia do Hitlerismo, fala da possibilidade do espaço do corpo na
história enquanto definidor trágico da história, em que as heranças de sangue,
a raça definiram o ideal de homem, inferindo um ideal de corpo. O corpo
definidor, tal qual o corpo “dolorido”, implica uma exclusão e perda de
identidade que reduz o corpo a um objeto capaz de responder às exigências do
sistema dominante, que reduz o corpo à força produtiva e, consequentemente,
lugar da exclusão de qualquer relação baseada na intersubjetividade, ou seja,
nas relações com os outros corpos. Na dor, o eu-corpo não conhece lugar, senão
aquele delimitado por seu próprio sofrimento, desde que é com o corpo – e isso
nos ensina Merleau-Ponty (2004) – que fazemos nossas
experiências com o mundo, que elaboramos nossos projetos, pois o mundo e o
nosso corpo são feitos do mesmo estofo. Para esse filósofo, na obra A Fenomenologia da Percepção, é evidente
que nossas relações com o espaço não são as de um sujeito puro, desencarnado
como qualquer objeto. Somos o que chamaremos aqui, acolhendo uma expressão já
dita por Sánchez (2004), um eu-corpo, esse
sujeito que, segundo Merleau-Ponty (1994),
está imbricado com o mundo através de seu corpo. O corpo é, portanto, mundo.
Para ser verdadeiramente identidade existencial, o corpo deve estar entrelaçado
com o mundo, ser um eu-corpo. Porém, o que se passa com o corpo na dor? O corpo
na dor é, possivelmente, aquele corpo ensimesmado, voltado para si mesmo,
embotado, desde que o corpo reclama para si atenção total e a sua presença no
mundo se retrai. O corpo passa a ser o lugar do pensar de si e não mais um
si-com-o-mundo.
São,
então, nas imagens dos corpos, colhidas por Sebastião Salgado em suas andanças
pelo mundo, que vemos realizar-se a expressividade do corpo que se esquece do
mundo e torna-se embotamento de si. São as imagens de Salgado que nos dão a
dimensão deste embotamento de si, e abrem uma reflexão para o corpo na dor do
Outro.
Carregados
de subjetividade, os corpos que se fazem relatos nas fotografias desse
fotógrafo desvelam um corpo “outro”. Rompem com a representação do corpo como
harmonia e silêncio, ou seja, com um corpo que não apresenta nada a ser dito. O
corpo “harmônico” é o corpo que não vem atormentado pelo sofrimento, que
concorre para uma ideia de corpo não dolorido, corpo da ordem. Desse corpo nada
há de se falar, aparece intocável, é o corpo protótipo da beleza, da perfeição.
Porém, quando o corpo se opacifica, suspende um relato sobre o que está
instituído e funda uma “fala” sobre o que nele faz “ruído”, torna-se Dizer.
Estamos, então, diante do corpo diferente. Diante do ruído que ele faz, estamos
frente a uma relação com o que nos ultrapassa, com o que está completamente
fora de nós. Assim, instalam-se as imagens do fotógrafo como ruído do diferente,
embotamento que marca com vestígios o seu retraimento.
É
a partir da experiência com essas imagens que fazemos uma experiência Outra,
com o corpo que tem fome. A ideia de corpo que tem fome, que encontramos em
Levinas (2000),
é a ideia de corpo, ampliada, um corpo-eu que, destituído de seu diálogo com o
mundo, firma-se de modo outro. Ter fome não significa aqui simplesmente a
necessidade de prover-se de alimentos, vai além, trata-se de um corpo que exige
respeito, através do que nele se retrai, e, resistindo ao nosso entendimento,
conserva-se no mistério, forma única de manter-se como experiência reflexiva.
Levinas, o filósofo da ética do Outro, lembra que:
Vivemos
de ‘boa sopa’, de ar, de luz, de espetáculos, de trabalho, de ideias, de sono,
etc... Não se trata de objetos de representações. Vivemos disso. [...] A fome é
a necessidade, a privação por excelência e, neste sentido, precisamente viver
de... não é uma simples tomada de consciência do que preenche a vida. Estes
conteúdos são vividos: alimentam a vida. (LEVINAS, 2000, p. 96-97)
O
filósofo infere uma concepção de subjetividade encarnada, que encontramos
também em Merleau-Ponty, em que o corpo, a carne, não é uma metáfora, mas o
corpo é o lugar encarnado do pensamento. Digamos, as imagens encarnam um
pensamento. Assim, o cumprimento das necessidades básicas da vida não se esgota
simplesmente num esquematismo utilitário, mas constituem-se no que somos
efetivamente. Levinas quer dizer efetivamente que somos corpo, mas corpo
ampliado, não somos espírito, temos corpo e mente. O corpo-eu, portanto, é o lugar do sujeito, um corpo que conta no
mundo num ato de interpretação singular com o mundo, dentro de seus próprios
projetos, para obter a felicidade. Corpo que está sempre centrado em um
conteúdo: “é a alegria ou o esforço de respirar, de olhar, de alimentar-se, de
trabalhar, de manejar o martelo, a máquina, etc.” (LEVINAS,
2000, p. 96), e de fazer coisas no mundo a fim de promover relações
de conhecimento. Quando o corpo-eu
fica privado desses conteúdos, torna-se o corpo da negação e, consequentemente,
da reflexão. A relação da vida com seus conteúdos é a própria vida, e, ainda,
quando o corpo-eu vê-se privado de
todo conteúdo básico para sua subsistência, não sabe mais arriscar-se pela
felicidade, perde essa capacidade. Assim, com pertinência, lembramos o filósofo
Levinas, para quem ao corpo pertence todo discurso da subjetividade humana. O
corpo condição de possibilidade do sujeito é não só o espaço da necessidade mas
também, e sobretudo, o lugar da transcendência no ser. Todas essas questões
são, a meu ver, fundantes nas imagens de Salgado. É diante de uma postura dessa
ordem que podemos acolher as imagens de Sebastião Salgado, considerando-as como
contato de experiência com a imagem do corpo como absolutamente Outro diante de
nós, em que realizamos a experiência da radicalidade imediata da percepção de
um corpo-eu.
Trata-se
de dizer que o corpo só faz diferença no que as imagens fotográficas levantam
em si mesmas, como reflexão. Não se
trata de dizer que as imagens realizam essa radicalidade obscura da experiência
com o corpo, mas que essa obscuridade é própria
de sua experiência de ser imagem, do que nela faz ruído, o que confere a esses
corpos um contorno de sombra. Eles confirmam a ideia de Infinito levinasiano
atribuída ao absolutamente Outro, ou seja, a impossibilidade de deixar clara a
dor, conferindo ao corpo dilacerado uma reflexão. As imagens realizam a
impossibilidade de dizer o corpo ensimesmado pela dor, o corpo-eu destituído de
sua possibilidade de diálogo com o mundo. O que a imagem testemunha, portanto,
é a opacidade do corpo-eu, no momento
em que o “olhar” do fotógrafo “se faz gesto”, ou quando ele “pensa por meio das
imagens”, diz MerleauPonty (2004), lugar em que a
imagem se “mostra” sob outra luz. Trata-se de "mostração"
questionadora e misteriosa, ou da economia do ser. A partir de então, em tom
profético, poderíamos dizer: infelizes os que vêem na imagem a mera imagem, e
ainda os que vêem na imagem o que querem ver, usando de seus poderes contra a
passividade do ser que resiste à "mostração". Ou, os que explicam a
imagem pela vida do captador de imagens, esclarece-nos Merleau-Ponty (2004),
ao denunciar os erros de Emile Bernard e Zola, por terem dado demasiada
importância à psicologia, ao seu conhecimento pessoal do artista, esquecendo o
Dizer da imagem, acreditando no fracasso da imagem de suas pinturas.
A
imagem não pede explicações fora do que ela mesma é. Na proposta aqui
delineada, a questão não está em ver, mas encontrar fecundidade no “saber não
ver”, ou em saber ouvir os ruídos, esse espaço em que “[...] tudo desapareceu
na noite, ‘tudo desapareceu’ aparece. É a outra
noite” (BLANCHOT, 1987, p. 163). Porque a “outra
noite” não acolhe, não se abre, tem-se diante dela de saber fazer a experiência
de estar na economia do ser, que faz valer a experiência com o Infinito, esse
espaço absolutamente outro. É pela ideia de Infinito que Levinas e Blanchot nos
convidam a fazer uma experiência fecunda com o estranhamento. O Infinito é a
“ausência na margem do nada. Ele foge sempre. Mas deixa o vazio, uma noite, um
vestígio, onde a sua invisibilidade visível é o rosto do próximo” (LEVINAS,
1967, p. 281). Assim, pelas imagens de Sebastião Salgado, fazemos
uma experiência com o corpo do outro ensimesmado, e é através delas que podemos
elaborar uma reflexão sobre o corpo rompido de seus direitos.
Nas
imagens do corpo de Sebastião Salgado, insistimos, podemos realizar uma
experiência radicalmente diferenciada do corpo na dor do outro. Ali, o corpo na
dor nos diz eis-me aqui, põe-se
diante de nós, aproxima-se, confronta-nos, e exige uma experiência a partir de
um corpo demasiado humano para
aceitarmos. Não se trata de dizer que é uma experiência com o corpo distante de
nós, mas uma experiência com um corpo excessivamente próximo de nós, e esse
excesso é que as fazem imagens de reflexão.
Sebastião
Salgado faz da imagem do corpo um espaço de reflexão rigorosa, um espaço
profundo, uma conversa infinita com a dor do outro, e institui a
impossibilidade da intencionalidade diante da dor do Outro. Não há como
conhecer definitivamente essa dor, ela torna-se fecunda a partir da dimensão de
impossibilidade. A dimensão de nossas relações com suas imagens, ao se
instituírem como reflexão, denuncia o corpo do outro como um abismo, e nossas
relações de poder diante do cotidiano, como fracasso. São imagens que resistem
à nossa interpretação. Denunciam a ausência profunda das relações básicas, as
quais deveríamos manter com o “Outro”, e fundam um lugar estranho, cuja dimensão
quem nos dá são as imagens do corpo na dor, ou seja, a dor do Outro, que se
avizinha a nós pela humanidade, porém, de uma humanidade demasiado humana, que
nos afasta da possibilidade de nos reconhecermos nela. Que humanidade é essa,
que se faz sombra, nas imagens desse fotógrafo? Imagens que se esquivam de
nosso saber? Diante do estranhamento, da destituição de nossos poderes frente à
imagem, somos tentados a cometer os erros de Zola e Émile Bernard diante das
obras de Cézanne, ou seja, pensar as imagens sem atentar para o que elas são
essencialmente. E, lembramos, o que elas são essencialmente é o inominável, o
que foge ao nosso poder de dizê-lo
1 À guisa de um fechamento
As
imagens de Sebastião Salgado põem a
impossibilidade de um saber diante de um corpo que se dá como humano. Trata-se
do corpo estranho que se desarmoniza
com tudo o que conceituamos sobre o que seja um corpo. Assim, o fotógrafo
institui o corpo como lugar de denúncia, o único lugar em que o corpo do outro
na dor (corpo diferente) radicalmente estabelece um “diálogo” com o mundo,
porém, insistimos, a partir de uma linguagem infinitamente obscura, a linguagem
impotente, porque linguagem dos escombros, em que nossa própria humanidade se
vê questionada.
São
imagens do corpo ensimesmado, preocupado consigo mesmo, tentando encontrar
saída para suas necessidades mais prementes, como comer, dormir, descansar.
Faltam a esse corpo as energias mais básicas para ficar de pé, sair de si
mesmo, ou seja, comer, descansar, ter casa e trabalho. Corpo que supera toda
esperança possível de uma espera, cujo tempo não é mais que uma repetição. O
fotógrafo mostra o corpo-eu no seu
estado de impossibilidade de experimentar outros corpos e de estabelecer com
eles uma relação com base na intersubjetividade.
As
imagens de Sebastião Salgado instalam-nos, diante de um diálogo de
impossibilidade, frente à dor do outro. Porém, essa impossibilidade torna-se,
ela mesma, a dimensão da dor do Outro, e nisso ganha fecundidade de imagem. A
imagem é, então, agente de uma experiência-limite. Uma experiência com o
desconhecido que não significa o absolutamente incognoscível, mas aquele que se
insinua através de vestígios,
resguardando seu mistério. Como um existente sem existência, o corpo objeto
dessas imagens vaga pelo mundo, já não dialoga com o mundo. O corpo dolorido
parece não fazer mais sentido para aqueles que o carregam, porque, atrelado
radicalmente ao Eu, perderam a vitalidade de “habitar o mundo”. Tornam-se
corpos enigmáticos, são imagens da dor do Outro. O corpo como fardo. Corpos
destruidores dos conceitos que tentam esclarecer a ideia de humanidade, a
ausência de “carne” no seu sentido mais amplo. Agridem, porque impõem um modo
outro de ser corpo. Tornam-se obscuros porque são dizeres da ambivalência,
trabalham com a possibilidade de ver o corpo de modo outro.
As
imagens de Salgado, então, simplesmente apresentam-se: eis-me aqui. Estamos com elas, segundo Levinas (1964,
p. 287),
num evento de proximidade, pois:
A proximidade não é intencionalidade. Estar
ao pé de alguma coisa não é abri-la e, assim revelada, visá-la, nem sequer
‘preencher’ pela intuição o ‘pensamento significativo’ que o visa e sempre
conferir-lhe um sentido que o sujeito tem em si. Aproximar é tocar o próximo,
para lá dos dados apreendidos à distância no conhecimento, é aproximar-se de
outrem.
Assim,
as imagens querem ser vistas, porém, num movimento contrário, encolhem-se,
recusando-se ao diálogo. Exigem o nosso olhar, mas fogem ao enfrentamento,
resguardam-se de nosso poder (interpretação). Ensimesmados na dor, esses corpos
vagam num tempo outro, num espaço outro, sobre os quais perdemos o poder de
intencioná-los. A imagem é mistério, é a “outra noite” blanchotiana. O
fotógrafo colhe essas imagens no dia, na vivência do cotidiano, em que explicações
outras podem ser dadas a suas imagens, mas as faz valer como a “outra noite”,
onde o ser murmura na sua economia radical. Parece que a dor que habita tais
corpos proíbe qualquer espera a não ser a da dor mesma. As imagens fazem da dor
um excesso sobre o qual já não podemos poder. Mas, de que excesso falamos aqui?
Trata-se do excesso de um dizer, que
diz mais do que podemos abarcar, esse Infinito, nos moldes de Blanchot e de
Levinas. As falas não são Ditos, são Dizeres, falas tais quais as das pitonisas
gregas, que dizem, através de palavras cifradas, aforismos, que infundem às
formas um silêncio majestoso, um mutismo em si mesmo inumano, que faz
projetar-se nas formas, explica Blanchot (1999, p. 25),
“el escalofrío de las fuerzas sagradas, esas fuerzas que, por el horror y el
terror, abren al hombre a regiones extrañas”.
O
fotógrafo põe, demasiado perto de
nós, o corpo da dor do outro. O obscurecimento das imagens, a resistência que
elas instalam à nossa intencionalidade não enfraquece nossas reflexões, ao
contrário, acentuam nossa relação com elas, dado nosso desejo pelo que nelas há
de ruído. Em contraste com os corpos harmônicos (corpo sem dor), parece natural
que eles pertençam ao que desejamos distante. Porém essas imagens perseguem-nos
através do Desejo. Impregnam nossa imaginação. Adquirem força em nossas vidas.
Não se trata de uma atitude voyeurística, mas de um olhar que, diante da
catástrofe que se delineia na contemporaneidade, exige uma atenção às imagens.
A própria imagem exige essa atitude, ela cobra o nosso olhar, faz promessa para
posteriormente retrair-se, e faz-se mais desejada. A resistência, que o excesso
de dizer impõe, é positividade
reflexiva, quando dá a dimensão do que é ser corpo-eu, pois é através do que nos joga no abismo que podemos ter
algum pressentimento do Outro, é aí que ele nos prende, rouba-nos a nós mesmos,
como afirma Blanchot (2001, p. 96). É isso que faz do
dizer um excesso, ele não pode ser tematizado, não tem como correlato um Dito
que se propõe a uma verdade e se fortalece no esforço de fazer parecer o ser, é
ambivalência e ambiguidade. As imagens são, então, significação primordial.
A
imagem como significação primordial anula a alternativa de questionar a fotografia
como lugar comum, cuja ideia primeira pode ser a guiada por intenções fora da imagem mesma. A força das imagens de
Sebastião Salgado está na maneira como elas são capturadas, elas são fruto de
momentos que se instalam na existência de um fotógrafo andarilho que segue
inquirindo a existência, forçando-a a dizer-se, mesmo sabendo do fracasso dessa
insistência. É o desejo do fotógrafo de fazer disso sua busca incessante que
faz com que suas imagens não se instalem no lugar comum. Não é sua vida que
explica suas imagens, mas antes, nos diria Merleau-Ponty, são as imagens que
exigem essa vida de andarilho. É o corpo que se faz morada para o olhar do
fotógrafo. Ele invade os corpos, mostra-lhes as rugas, os ossos da magreza e o
olhar desbotado, o cansaço do corpo, o desânimo do olhar, e faz de sua coleta
enigma da forma. Delata a “ausência de carne”, delata a aspereza da morte,
mostra a ausência de desejo, enfim, tudo o que marginaliza o corpo-eu, ou seja, institui a imagem
como dito essencial (linguagem obscura) que é o Dizer.
O
fotógrafo apresenta o corpo de outro modo que ser. O fotógrafo é, então, o
filósofo da imagem do corpo, porque instaura no momento da imagem, nela mesma,
uma reflexão. É através da imagem do corpo da dor que o corpo torna-se real, ou
seja, é quando ele pode ser falado, reflexionado, situado. A imagem é uma
“fala”, não a fala da clareza, da competência, mas fala sobre o inominável. A imagem abre a possibilidade da fala
sobre o diferente. Nesse caso essa imagem inverte a clareza dos conceitos, põe
a positividade do conceito como obscuridade, pois diz que o corpo só se torna
efetivamente reflexivo na sua opacidade total. Ou seja, o corpo que se faz
imagem nas fotografias de Sebastião Salgado impõe resistência à nossa
intencionalidade, espaço em que encontramos o fundamento único de sua necessidade
de impulsionar uma reflexão sobre si. É enquanto corpo da dor que ele desvela
uma humanidade estranha, um modo outro de ser humano, de habitar o mundo, numa
humanidade sem humanidade, devedor do corpo-eu.
Assim, a imagem denuncia o esquecimento do ser do corpo-eu e abre o discurso
outro.
O
corpo, então, é mistério a partir da dor, pois é nele que fazemos a experiência
de estranhamento diante da dor do outro, e é ele que nos dá o registro infinito
de nossa própria debilidade. Mas é na vulnerabilidade que ele apresenta na
imagem que encontramos a força da reflexão sobre ele próprio.
Assim,
podemos dizer que é na imagem do corpo na dor, apresentada por Sebastião
Salgado, que o corpo transborda de
corpo sendo o transbordamento de um “dizer”. Afirma a corporeidade, um corpo-eu, em que a dignidade humana
funda-se nas exigências dadas pela condição humana encarnada, num corpo que é
ao mesmo tempo corpo-que-pensa, corpo em relação com o mundo, e que a dor
(especialmente no caso das fotografias de Sebastião Salgado) não deve ser
pensada como algo assumido por um sujeito que é para si, mas que esta dor é, por extensão, nossa também.
As
imagens fazem um discurso que vem de outra
margem, porque estabelecem um diálogo com o desconhecido. As imagens de
Sebastião Salgado abrem um abismo intransponível entre nós e o Outro a partir
da não-coincidência do corpo do Outro com o mundo. Por ser essa não
coincidência, ele aproxima-nos de uma relação de experiência que se dá como
abismo, que não resolve de imediato o problema, ao contrário, problematiza-o
mais ainda. As próprias imagens de Sebastião Salgado dizem-nos que as imagens
são muito mais que meras imagens, são o instalar-se da sombra.
O
fotógrafo, portanto, instala o corpo numa região estranha à visibilidade, faz
uma tentativa de dizer a dor do Outro, mas sem sucesso. A prova disso é que ele
deixa fissuras, não presta conta dos ruídos, e, da realidade, consegue somente
a sua sombra (imagem). A sombra é este lugar que indica uma fala para além do
que podemos abarcar, quando o corpo na dor do Outro nos põe essa dimensão infinita do humano, desse corpo atrelado ao
mundo, do qual não podemos nos distanciar, ou seja, essa identidade inalienável
entre o Eu e o Corpo, de que a imagem essencial se ocupa.
Referências
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SANCHEZ, Pedro A.
La vigilia del cuerpo: arte y experiencia corporal en la contemporaneidad.
Murcia, Espanha: Tabvlarivm, 2004.
Autora: Anita Prado Koneski
In: Critica Cultural
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