quarta-feira, agosto 28, 2019

PSICANÁLISE E LITERATURA







O estranho em Campo de Sangue


Texto apresentado na reunião do Grupo de Leitura, em agosto de 2019. O livro escolhido para esse encontro foi Campo de Sangue, da escritora portuguesa Dulce Maria Cardoso.


Uma das principais características do romance de Dulce Maria Cardoso é revelar o estranho que se esconde sob o manto do cotidiano. Por isso mesmo, sem uma leitura atenta, o texto de Dulce está fadado a perturbar, desconcertar e frustar a maior parte de seus leitores. Somos arrastados por um narrador que não tem a intenção de seduzir, nem confortar. Não é o tipo de livro que lemos de um só fôlego. Pelo contrário, é um texto que precisamos ler aos pouquinhos para não nos sentirmos enfadados. 
Nosso personagem é um homem solitário. Vive numa pensão imunda, cujo prédio está prestes a desabar. Não tem um emprego, muito menos uma carreira profissional. Foi casado com uma mulher que se dizia apaixonada por ele, contudo, ele nunca soube o que era sentir-se apaixonado, durante o casamento.
Por isso mesmo, não sofre ao ser abandonado pela esposa.  Pelo contrário, parece-lhe uma benção. Não terá mais que suportar diariamente o amor excessivo daquela mulher. Eva nunca soube que ele se sentiu aliviado quando entregaram a chave, acreditava que lhe fazia falta, foram tantos anos, uma questão de hábito…[1]
Sozinho, sem ter aonde morar, passa por algumas pensões que são pagas com o dinheiro de Eva, agora ex-mulher. De pensão em pensão, acaba por acomodar-se em uma cujo prédio estava condenado estruturalmente.  Um lugar velho, sujo e prestes a desabar; mas que, para seu sossego, a senhoria controlava os insetos colocando diariamente uma grande quantidade de inseticida em seu quarto. O cheiro forte do inseticida apazigua seu medo fóbico de insetos.
Durante o casamento, Eva cuidou dele e aceitou sua alienação sem questionar ou reclamar. Eva é uma daquelas mulheres que vivenciam o amor através do cuidado com o outro. Mulheres que estão sempre à procura de alguém que precise ser cuidado. Uma figura feminina bastante comum, que na sociedade contemporânea, consegue sublimar a pulsão de cuidar pela via profissional. A sublimação tem esse efeito: transformar o acefalismo pulsional em ação social. 
Se por um lado, Eva satisfaz a pulsão amorosa através dessa relação de dependência do seu objeto de amor, vivenciando uma paixão que germina da compaixão por um objeto degradado. Por outro, continua a ser um sujeito desejante e, portanto, tem fantasias. Deseja sair da pobreza, para isso trabalha literalmente dia e noite. Quando percebe que não é através de seu trabalho que vai conseguir realizar seu desejo, depara-se com um homem práticoe rico que se interessa por ela. Aproveita a oportunidade que a vida lhe oferece, divorcia-se, faz as malas e vai embora. 
A mudança na vida, muito rapidamente apresenta-se como uma armadilha afetiva. O novo marido lhe oferece a boa vida que tanto desejou - carro, casa perto da praia e com piscina, dinheiro, viagens  - porém, ele não é um homem dependente. Não teme ocupar o lugar fálico no jogo afetivo. Deseja a mulher, erotiza seu corpo, sabe gozar com ele. A posição fálica desse homem não erotiza Eva. Não é no lugar de objeto do gozo de um homem que ela goza. Seu gozo tem um pé bem estabelecido dentro do domínio fálico. Ela não sabe fazer semblante do objeto de desejo do outro, necessita ocupar o lugar fálico para sentir-se amando. 
A fim de assegurar seu lugar de sujeito amoroso, continua cuidando do ex-marido. Sustenta-o financeiramente, mantendo através da dependência financeira o que acredita ser um laço afetivo. Repete - no sentido da repetição freudiana - a posição paterna. Ele aceitou a limitação que Eva lhe impôs, se Eva queria um caso perdido ele era capaz de o ser, a única coisa que conseguia fazer era ser o que os outros queriam que fosse...[2]
Preso na teia das demandas, nosso personagem vai organizando sua vida a partir das idealizações das mulheres que o rodeiam. Enganava a todas, mas todas tinham consciência desse engano, poistinham consciência de que não lhes restava outra alternativa senão a destes enganos consentidos.[3]  
Com a ex-mulher, mantém-se dependente e comporta-se como amante para manter a fantasia dela.  Ele deveria ficar incomodado por Eva o sustentar, mas em vez disso ficava satisfeito, era a única forma que sabia de depender dela. Outra qualquer seria impossível.[4]
Para a Senhoria, ele é um respeitável funcionário que sai toda manhã para trabalhar. Para ela, inventa o trabalho, os amigos e o chefe. Tinha construído uma vida que lhe agradava, cumpria um horário de trabalho, levantava-se sempre à mesma hora, quando regressava contava histórias da empresa…[5]
Psicológicamente a personagem da Senhoria é constituída dentro da estrutura que denominamos de obsessiva. Ela porta as exigências da lei. Todos devem estar dentro das normas instituídas. Um filho tem o dever de ser um bom filho: visitar a mãe, telefonar constantemente, etc, etc, etc. Um filho, como dita a bíblia, deve respeitar e amar seus pais. Um homem deve ser um trabalhador. Seus inquilinos devem pagar religiosamente o aluguel. Zelava pela segurança do seu prédio apesar de o terem declarado irrecuperável e de terem dado a ordem de demolição, a senhoria continuava a fazer chaves para a porta de entrada do prédio em risco de ruir.[6]
Tudo deve estar conforme a lei. No entanto, quando a lei dirige o olhar em sua direção, o obsessivo, rapidamente, assume a posição de vítima. Como exigem isso de mim? Eu uma pessoa tão legal, tão cumpridora das leis e das normas, agora tenho que aguentar essa injustiça. A lei quando se volta em direção ao obsessivo é quase sempre experimentada como injustiça. Porque, não podemos esquecer, a posição de fervoroso adepto do respeito às leis e às regras é um mecanismo de proteção ao desejo de transgressão.
Para a Mãe, nosso personagem é o filho que deu certo: tem um emprego e mantém seu próprio sustento. Visita à Mãe no seu aniversário e, provavelmente, em outras datas festivas levando-lhe presentes. Repete esses hábitos mecanicamente, ainda que a mãe pareça não se importar com essas atenções. Telefona regulamento para a ela, atendendo o ideal de bom filho idealizado pela Senhoria; mesmo que não tenham nada a dizer um ao outro. 
A figura da Mãe criada por Dulce Cardoso borra o imaginário da mãe amorosa, meiga, terna, carinhosa. Encontramos a figura de uma mulher que se alimenta da moral cristã para assegurar suas verdades delirantes. Veste seus valores como quem veste uma camisa de força.  Não se deixa atravessar por nenhuma emoção, nem mesmo pela morte. Quando é chamada pelos médicos para falar do filho, ela não tem nada a dizer. Como também não tinha nada a dizer sobre o pai daquele filho. O horror causado pelo ato do filho provoca-lhe um desgaste incômodo que nomeia como vergonha. Antes de fechar a porta, a mãe pergunta ao médico se tem filhos. Dois, responde o médico, com ternura, dois. A mãe diz, então quando lhe acontecer o mesmo a si verá que não tem nada para dizer, a única coisa que se tem é tanta vergonha que os olhos dos outros nos queimam, quando lhe acontecer o mesmo vai perceber que um filho pode ser um azar muito grande que ninguém consegue explicar.[7]
E, finalmente, para a quarta mulher, a Rapariga Bonita, ele é um enigma. Em alguns momentos, é um homem apaixonado que pode lhe dar presentes e, talvez um dia, um lar. Em outros momentos, o amor excessivo que ele demonstra sentir por ela torna-se possessivo e assustador.  Ela tem medo e vergonha dele. 
É no encontro com a Rapariga Bonita que o estranho – a ruptura - começa a se revelar. O que estou chamando de estranho é o que irrompe com furia e sem nenhum controle. O não esperado. O inrreconhecido que atravessa a harmonia do conhecido. O sem sentindo de um surto psicótico.
Quando a ruptura do nó borromeo suspende a produção de significação e, portanto, de sentido; ainda assim é possivel refazer o caminho da desintegração psíquica. Não se trata aqui de apresentar o pensamento de botequim de que tudo tem um sentido.  O que nos interessa é olhar os fenômenos da fratura psíquica que antecede o aparecimento do surto. A compreensão de que esses fenômenos não são aleatórios, mas fazem parte da articulação simbólica particular a cada sujeito, possibilita a compreensão dos pontos de impasse geradores do surto.
Comecemos pela percepção do tempo. Para este sujeito, só existe uma percepção de tempo: a do tempo cronológico. Cada passo, cada movimento é assegurado e organizado pelo tempo do relógio. A cronologia das horas organiza o seu dia e pavimenta os laços sociais.  Olhou outra vez para o relógio, era inútil contar o tempo mas o rigor dos ponteiros situava-o na vida, o tempo contado dava-lhe um lugar na vida...[8]
Quando o relógio é roubado o mundo se desorganiza. O sujeito fica à deriva, pois lhe faltam outras representações simbólicas do tempo. A alienação do corpo próprio não comporta a percepção de um tempo biológico.  Olhou para o pulso, fez o gesto por hábito, deixara de ter horas, mas não precisava, conhecia o tempo de cor, afastou-se rapidamente da casa de Alicinha, o pulso sem relógio não era o dele, não lhe pertencia...[9]
Um pouco mais à frente, quando retorna ao cotidiano da pensão, agora sem o relógio, a desestabilização psíquica se aprofunda: Entrou com cuidado na pensão porque não queria que ninguém o sentisse entrar, não podia saber que o tempo não se deixa contar de cor e foi-se desacertando com a vida, sem o relógio no pulso voltava cada vez mais tarde para a pensão, ainda pensava em comprar outro, chegou a entrar numa loja, mas os dias foram passando e sem se dar conta desacertou-se de vez com a vida.[10]
O roubo do relógio remete à cena de sexo com a prostituta. No quarto, no momento de consumar o ato sexual, instaura-se a sobreposição do discurso repressor da Mãe com a imagem de Alicinha: a santinha da catequese.  A erotização não acontece, o corpo vacila. Falta a mediação simbólica que estruturalmente separa o eu do outro, a fronteira que separa o gozo do eu com o gozo do outro. A inscrição do Nome do Pai que permite ao sujeito realizar a metáfora do Desejo da mãe. Metáfora que possibilita à criança sair da dimensão imaginária dual e especular, para fazer uso da dimensão simbólica que permite a possibilidade da presença e ausência, da falha, do vazio e por extensão, do Desejo.
A vivência da interdição sexual inscrita no corpo juntamente com a perda do relógio, objeto que servia como suporte imaginário que estruturava a realidade, desencadeiam os primeiros sinais de uma organização delirante. É o que vem demonstrar o momento do encontro com a jovem do metrô. Uma jovem qualquer que virá a encarnar a figura idealizada da Rapariga Bonita. Nosso personagem teve a sorte de encontrar uma jovem à deriva, pronta a se deixar enlaçar por um homem que lhe demonstra um grande amor. 
A relação amorosa permite que ele novamente se estabilize. A perda da rapariga o arrranca da estabelidade provocando o surto. A realidade não se sustenta, ele precisa literalmente ter nas mãos o coração que ela um dia disse que era dele. 


 Maria Holthausen
Psicanalista, Doutora em Literatura UFSC



[1]pg. 89
[2]Pg. 162
[3]pg. 21
[4]pg. 19
[5]pg. 63
[6]pg. 55
[7]Pg.. 182
[8]Pg. 80
[9]Pg. 135
[10]Pg. 140

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