quinta-feira, agosto 29, 2019

PSICANÁLISE E ARTE




ESTÉTICA-SENSORIAL 

(Lygia Clark 1920/88)


A trajetória de Lygia Clark faz dela uma artista atemporal e sem um lugar muito bem definido dentro da História da Arte. Tanto ela quanto a sua  obra fogem de categorias ou situações em que podemos facilmente enquadrar: a artista estabelece um vínculo com a vida, e como podemos observar nos “Objetos Sensoriais” de 1966/68, a proposta de utilizar objetos do nosso cotidiano: (água, conchas, borracha, sementes, etc), por exemplo, a intenção de desvincular o lugar do espectador dentro da Instituição da Arte, que passa estar em constante transformação.
O fazer artístico de Lygia Clark traz a ideia de como se dá o processo de criação de uma artista contemporâneo e de como vai amadurecendo seu trabalho.
A poética caminha no sentido da não representação e da superação do suporte. Propõe a desmitificação da arte do artista e a desalienação do espectador, que finalmente compartilha a criação da obra.
No início de seus estudos artísticos, Lygia estudou no Rio de Janeiro e foi fundadora do Grupo Frente, em 1954, integrou mais tarde a I Exposição de Arte Neoconcreta com Ferreira Gullar, Franz Weissman, Lygia desliza entre o singular e o universal, para logo perceber que sua pintura não sustentava mais o suporte tradicional. Procura novas saídas, como nas Unidades, 1959 onde moldura e espaço pictórico se confundem, e pinta a moldura da cor da tela, que ela chama de linha orgânica.
O que é uma arte plástica feminina? Entendendo não como uma divisão sexual, mas como um lugar marcado pelo vazio, que independe do sexo do biológico.
Arriscaria dizer que Lygia Clark, pratica a arte plástica do gozo e que está em eterna mudança, quebrando valores paradigmáticos, colocando em cheque o mito da personalidade do artista e todo narcisismo associado imagem do artista; a perda da imagem; a utilização de objetos absolutamente ordinários e de utilidades domésticas aplicadas as suas experiências; a desmaterialização do ser em favor do ato de fazer, tal maneira que ele quase se desfaz; em outro momento experimentou práticas terapêuticas onde todas as influências se misturam como ao Zeitgeist, marcado pela valorização do corpo e o aparecimento de práticas de grupo nas terapias. Ainda a tentativa de que o sujeito fale do seu corpo e com o seu corpo de alguma maneira na arte, isto é, a experiência corporal deve por fim dar lugar à fala. Para ela, era o momento de construir com o corpo um espaço para a palavra. E a palavra substitui o objeto.
Com a dissolução da própria arte, do artista e do espectador, concluirá em sua proposta terapêuticanem o objeto, nem o sujeito têm estatuto independente, e, portanto não há mais arte. Foi sem dúvida uma arte subversiva, que não cansou de se reinventar.
Para tentar entender sua obra e trajetória artística, usarei como referências alguns itens:
A Desmistificação da arte
Desde que o objeto perdeu seu sentido como meio de comunicação e o homem entra como temática na arte, como objeto de si mesmo do outro, a ligação arte e patologia apresentam novos aspectos: o artista está agora interessado em trabalhar com os psicanalistas, usando o corpo, como material para regredir pacientes e fazê-los tomar consciência do próprio corpo.
Estas são questões que acompanham a configuração do sujeito dividido em relação ao objeto. Podemos dizer que não se trata do objeto como símbolo, mas como fato. John Cage (do grupo alemão chamado Fluxus) dizia que: o objeto não pode ser imaginado e é uma espécie de ruína, objeto oco que é o resto de uma operação de constituição do sujeito no campo do outro
Corroborando com essa reflexão, Jochen Gertzcita o filme Shoah, (filme de Claude Lanzmann). Shoah palavra hebraica para designar, no religioso, catástrofe, nadificação, devastação e o nome Shoah significa a destruição sofrida pelos judeus, no genocídio ou holocausto, naquilo que os nazistas denominaram a solução final. Demostrando o que é a interdição da representação. A obra não está na obra, o filme chega quase ao visível, a borda apenas o que surge dos testemunhos dos sobreviventes, que se ocuparam da tarefa de carregar e descarregar as câmaras de gás, ou dos oficiais nazistas que tinham a gestão dos crematórios. Não vimos nada, quem poderia ver isso? Não as vitimas empilhadas lá dentro. Tão pouco, os que estavam de fora. De todas as maneiras tudo corria na obscuridade. Como mostrar isso que não tem imagem e que ninguém viu? Este filme realiza um ato, um ato fundador de quando o objeto distancia-se da imagem real, lembrando com Lacan, que o objeto nos obriga a conceber, até certo ponto imaginar, algo que problematiza a imagem e nos impõe o desafio de formatar “um outro modo de imaginação”.
imagem não é apenas forma que organiza o corpofixa o eu numa linha de ficção, revelada na tela sobre a qual uma ilusória realidade virá se apresentar. “O pensamento lacaniano compartilha com a arte contemporânea, por exemplo, a questão do corpo para além da imagem especular, a concepção do objeto arruinado e inimaginável, o gesto, a do espaço como imprevisível, não mais organizado a partir da representação clássica, isto é o ilusionismo tridimensional (a perspectiva a questão Renascentista descoberta por Brunelleschi).”
Boa parte produção contemporânea pretende revirar o imaginário, de modo convocar o sujeito.
Neste imenso terreno, destaca-se Lygia Clark sobre o ato poético.

A Maleabilidade:
 Em 1963, apenas um ano após Lacan começar a fazer uso da fita de Moebius em seu SeminárioLygia põe-se também a utilizar esse objeto. O psicanalista Lacan, já havia recortado a fita em todo seu comprimento, seguindo a linha mediana de sua largura, para dizer que o sujeito não é mais do que esse corte que inaugura a distinção entre o dentro e fora. Ele define então, como citamos, como o “suporte estrutural do sujeito como divisível”.
Já com os Bichos, desde 1960 ela convoca o espectador ser coautor, na medida em que ele manipula essas esculturas com dobradiças, ao movimentar os Bichos. Ao privilegiar o contato entre homem e objeto, faz com que a obra se dê entre os dois, quando cada gesto gera uma resposta do outro. O Bicho não tem avesso. A partir de certos gestos o inesperado se configura. O diálogo ente os Bichos e o espectador subverte a ideia de que um pode controlar o outro.
Dissolvendo o objeto em favor do ato, a artista chega a abandonar os termos obra objeto de arte e adota o termo proposiçãoDesmaterializa o próprio eu, coloca em crise, e assim desperta o sujeito de sua alienação especular. Lygia fala: Instável no espaço parece que estou me desagregando
Meu corpo me abandona, pergunta? Onde está o Bicho-eu? Sem pontos de referências com o meu trabalho – que olha de longe. Fui eu quem fiz aquilo? Trata-se de um objeto precário.
Lygia em 1968 anuncia a respeito da obra de Hélio Oiticica assim como sua própria obra, o precário como novo conceito, a magia do ato na sua imanência e também a negação do objeto que perdeu toda sua carga poética projetada, para se transformar em algo onde as pessoas se debruçam para se encontrar com sua essência. A essência está no fundo do poço, e não no espelho d’água de Narciso, mas se põe em vertigem, diante da queda iminente.
Sobre a obra O Dentro é o fora de 1963, uma fita de Moebius modificada em aço inoxidável, Lygia afirma que, o sujeito atuante encontra sua própria precariedade (ele descobre o efêmero por oposição a toda espécie de cristalização. Agora o espaço pertence ao tempo continuamente metamorfoseado pela ação. Sujeito-objeto se identifica no ato).
O corte que define o sujeito, para a artista, não se dá em ato, mas no próprio desenrolar do temporal de sua tentativa, nunca alcançada. O espaço torna-se assim um campo de metamorfoses no qual o sujeito aparece, laçando-se fora si e já destinado a se perder no tempo. O ato de se fazer é tempo. O ato subverte a noção de existência: não sou propriamente em mim mesma, mas aconteço no ato.
Assim põe em questão o estatuto do objeto, em prol do simples desenrolar do tempo. O objeto desaparece, deixa de ser fixo. O ato promove aí uma junção entre objeto e sujeito que desloca um em favor do outro definido pelo movimento. O ato artístico clarkiano sustenta no tempo a oscilação entre dentro e fora, tornando-o virtualmente sem fim.
ato se faz no tempoO ato de fazer. O sujeito se faz no ato, de maneira que quase se des-faz, o desmaterializa, destaca-se de sua imagem corporal para lança-lo na precariedade. Tal despertar é um ato, no entanto, não tem início nem fim, não se localiza no tempo mais é o próprio tempo. Não se captura mais que um lapso de tempo, é uma poética sensação.
A experiência com a maleabilidade de materiais duros converte-se em material flexível. Lygia chegou à matéria mole: deixou de lado a matéria dura (madeira), passou pelo metal flexível dos Bichos e chegou à borracha na Obra Mole, em 1964. Como aponta no trabalho de dela, por exemplo, uma intenção de desvincular o lugar do espectador dentro da instituição de Arte, e aproximá-lo de um estado, onde o mundo se molda e passa ser em constante transformação.
Por sua vez, Lygia Clark, em seu Caminhando, de 1963, faz na fita unilateral, com uma tesoura, um corte transversal que não reencontra seu ponto de partida, mas prossegue sempre em uma nova volta, tornando sua largura cada vez mais fina e seu diâmetro cada vez maior, prolongando e expandindo a torção da banda em direção de uma ruptura final, já que a largura não é infinita.
Caminhando é uma verdadeira revolução na obra da artista: ele permite ultrapassar a distinção de obra de arte, em prol de uma primazia do ato. Ao propor o corte transversal da fita como o próprio trabalho artístico, ela desmaterializa a obra de arte, introduzindo a reflexão artística acerca das relações entre sujeito e objeto - ou seja, em termos psicanalíticos, sobre a fantasia.
Caminhante, o sujeito é um “itinerário interior fora de mim”, escreveu Lygia em 1965. Isso permitiu á artista radicalizar a participação do outro, do espectador, na configuração do trabalho artístico. No Caminhado, ela produz o ato. Há um só tipo de duraçãoo ato. O ato acontece na duraçãoNada existe antes e nada depois

Baba Antropofágica

A Dissolução da Arte:
No curso que ministra na Sorbonne desenvolve com um grupo de alunos a proposição Baba antropofágica e Canibalismo, em 1973, passando pela nostalgia do corpo, que define como momento de fragmentação corporal, para chegar à reconstrução do mesmo como corpo coletivo.
Na Baba antropológica, cada participante vai desenrolando a linha de um carretel que tem dentro da boca e depositando-a, cheio de saliva, sobre uma pessoa deitada. A percepção inicial do fio na boca se transformaria nas próprias vísceras que eles estariam pondo para fora. A fantasmática do corpo que me interessa e não o corpo em si. (o termo empregado na psicanálise francesa para fantasia freudiana é fantasme).
Para Clark, as fantasias são narrativas corporais, ex.: “receber o pênis, retorno ao útero, à vagina que se abre para fora se revirando pelo avesso”.
O apelo clarkiano ao corpo visa menos à presença dele em si do que à sua apresentação como convite a que o sujeito fale de seu corpo - e com seu corpo, de alguma maneira - na arte. A experiência corporal deve dar lugar à fala. No curso ministrado pela artista na Sorbonne, os alunos vivem com a artista e seus objetos relacionais experiências que compreenderão posteriormente no relato.
Era o momento de construir com o corpo um espaço para a palavra. Esta falta é uma espécie de comunicação que seria um espaço que só se pode construir com a linguagem plástica. Do pensamento mudo a um ato falado, Lygia constrói um imprevisível espaço do sujeito, rompendo em definitivo as fronteiras da arte.
dissolução da própria de arte, de artista e de espectador, e se concluirá na proposta terapêutica clarkiananem o objeto nem o sujeito têm estatuto independente, portanto, não há mais arte.
Lygia levou às últimas consequências seu projeto artístico, e isso obrigava a um total abandono do circuito de arte, da ideia de objeto de arte para contemplação e do próprio estatuto de artista.

O Não-artista ou a substituição da experiência estética pela sensorial:
Há um momento em que Lygia chega ao auge de sua arte e passa a confundi-la com a vida, rompendo uma linha tênue, o que a faz declarar-se “não-artista”, mas terapeuta..
No início de 1970, Lygia entra em contato com o estudo da psique humana, a partir daí criou novo rumo para vivenciar a arte e passou a se concentrar no desenvolvimento de experiências sensoriais e seu uso terapêutico. O questionamento cada vez mais profundo do estatuto do objeto de arte, do artista e do espectador; assim criando as máscaras sensoriais, essas obras que propõem uma experiência solitária. Na verdade, uma busca do autoconhecimento. Não há contato com o outro, mas com seu eu.
Uma das obras mais famosas de Lygia é a Máscara Abismo, ela tenta dar a experiência do seu órgão fora do corpo, e como um objeto qualquer pode ser acoplado a ele. A Máscara Abismo era composta de um saco de rede sintética que envolve um saco plástico cheio de ar.  Se colocava sobre o rosto e sua extremidade prolongava-se sobre seu peito, como uma tromba de animal. Este trabalho tente substituir a experiência estética pela sensorial, incentivando o uso do tato como ferramentas de transição que busca estimular uma maior sensibilidade e liberação criativa, que servem para promover um mergulho na subjetividade, libertar o ela chamava de “fantasmagoria do corpo”.
A máscara proporciona a sensação de estar caindo em um espaço vazio. Como a própria Lygia aponta: o vazio se apodera de mim só pode ser entendido sentindo e assim creio que sentindo posso entendê-lo, mas não resolvê-lo.
Tocar, cheirar, sentir, interagir. Este era o propósito maior das obras de Clark. Entrar em contato com este novo universo artístico significa deixar um pouco do que a artista desejava. Como aponta no trabalho de dela, por exemplo, uma intenção de desvincular o lugar do espectador  dentro da instituição de Arte, e aproximá-lo de um estado, onde o mundo se molda e passa estar em constante transformação
artista que perdeu a autoria da obra teve inicialmente várias atitudes compensatórias. Cultivou a sua personalidade como obra, passou a ser sua própria assinatura. Outros se voltaram ao misticismo, ainda na necessidade de uma poética transferente. Acabar com o “objeto transferencial” assumir-se me parece a sua maior dificuldade. Assumindo sua patologia acabando com o objeto transferencial, ele não precisa apenas ilustrá-la utilizando para isso o seu próprio corpo, multiplicando-o, sofrendo, ou ainda expondo a mesma através de um caso clínico (como fez o artista que expôs o mongoloide).
Hoje tudo está sendo checado, o antiobjeto, a antipsiquiatria, o antiÉdipo, é difícil delimitar a fronteira entre normalidade e patologia. O que significa o artista se mutilar em público? Vamos esquecer as palavras masoquismoautodestruição e sadismo. Destruir o próprio corpo na medida em que ele se transforma em temática, em que ele é o próprio objeto transferencial, agora já eliminado, é destruir-se a si mesmo ou nessa destruição está inserido o mito do artista? Ou nessa aparente desmistificação o mito do artista cresce na medida em que ele, artista, é o objeto desse espetáculo? Qual a diferença do artista que se corta e destrói a tela para negar a mesma como objeto de expressão? Parece-me mal resolvido como pensamento da negação da obra e do mito do artista. Atitude romântica do artista que ainda precisa de objeto, mesmo sendo ele, o objeto, para negar.
Quanto aos que expõem a patologia como obra de arte, pode ser uma decorrência do cruzamento da arte e patologia

 Ligia Czesnat - 
Professora Mestre em História aposentada da UFSC



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