A DEVASTAÇÃO NO MASCULINO E A VIOLÊNCIA CONTRA O FEMININO
Neste pequeno ensaio, apresento o artigo A devastação no masculino e a violência contra o feminino nas mulheres, de Denise Maurano e Joana Dark da Silva Souza, que se destaca pela consistente articulação entre a teoria e a clínica psicanalítica. As autoras deslocam a questão da violência contra a mulher do campo sociológico para uma dimensão estrutural do sujeito, apoiando-se na teoria lacaniana dos gozos — fálico e Outro. Com clareza e precisão conceitual, examinam como o encontro com o feminino pode ser vivido, por alguns sujeitos, como uma experiência devastadora, suscetível de desencadear formas extremas de violência. O texto oferece aos psicanalistas importantes elementos para pensar a relação entre o horror ao feminino, a fragilidade da posição fálica e as manifestações contemporâneas da violência.
A devastação no masculino e a violência contra o feminino
“Buscando pensar sobre as bases estruturais dessa violência, recorremos à teoria lacaniana dos gozos fálico e gozo Outro, feminino, propondo uma diferenciação entre o que se supõe como gozo Outro e o que se estabelece como gozo do Outro.”
“Devemos esclarecer também que, para fundamentar a hipótese que sustentamos, vamos evocar uma distinção que não está clara no seminário Encore, de Lacan, entre gozo Outro e gozo do Outro. Entendemos o gozo do Outro como relacionado à vivência de um gozo intrusivo e devastador atribuído ao Outro, vivido como absoluto, tal como ocorre nas psicoses. Resta nele a aniquilação do sujeito. Essa abordagem será fundamental para pensarmos, possivelmente, uma das dimensões do que talvez se passe na devastação no masculino, bem como nas consequências dessa experiência de invasão, que podem, muitas vezes, desencadear diversas formas de violência contra o feminino na mulher, chegando até mesmo à ocorrência do feminicídio.”
A partir dessa distinção, elaboram a hipótese da devastação no masculino. O sujeito posicionado do lado masculino da sexuação — isto é, aquele que se ancora na consistência fálica —, ao ser confrontado com a experiência do feminino em si ou no outro, pode vivenciar o gozo do Outro como uma invasão intolerável. O que está em jogo é o horror ao feminino, vivido como ameaça de emasculação e aniquilamento subjetivo.
“Esse estranho gozo não submetido ao sexual, relacionado especialmente sobre o que aqui tentamos designar como feminino na mulher, mas que pode também incidir sobre o feminino no homem, é desconhecido pelo sujeito que nada sabe acerca dele. Não se trata de uma experiência orientada pelo sujeito, mas uma experiência pela qual o sujeito é atravessado mesmo a despeito de si mesmo. Aliás, aqui vale novamente mencionarmos sua similaridade com a experiência do êxtase místico, a qual, como instrui São João da Cruz, “para se chegar pois a ela, há que antes pôr-se em trevas, do que abrir os olhos para a luz”.
A tábua da sexuação de Lacan serve como instrumento lógico para pensar essas posições. Do lado masculino, o sujeito se constitui pela regra fálica e por uma exceção mítica — o “pai da horda” que não é castrado. Do lado feminino, não há totalização: a mulher é “não-toda” regida pela lei fálica, restando-lhe uma abertura ao gozo Outro. É justamente essa abertura ao ilimitado, ao fora-do-sexo, que suscita o fascínio e o terror no masculino.
“As fórmulas da sexuação foram esboçadas por Lacan no seminário “Ou pior...” e no escrito “O aturdito”, mas é no seminário XX – Mais, ainda... que sua forma definitiva será apresentada. O mito do Pai da Horda, referido por Freud (1913) no texto “Totem e Tabu”, será utilizado por Lacan para mostrar que a condição do todo é a exceção, ou seja, na sexuação dos sujeitos, aquele que pode tudo, que não tem limites, que não tem divisão, só pode ser situado miticamente, e fica de fora das trocas humanas. Para estruturar seu pensamento acerca da grande questão das diferenças, Lacan propõe, na tábua da sexuação, uma secção, uma divisão, um lado HOMEM e um lado MULHER, para evidenciar as posições subjetivas assumidas pelo sujeito frente ao gozo. Desde já é interessante pensarmos que o sujeito que se coloca do lado homem, marcado por essa posição, não precisa ser necessariamente um homem; pode ser um sujeito mulher que se experimenta subjetivamente enquanto homem e vice-versa. Afinal, como já observava Freud, todos nós somos, em certa medida, bissexuais.”
A devastação no masculino, portanto, não se restringe ao campo da psicose; ela pode atravessar a experiência amorosa e social, surgindo quando o sujeito se sente invadido por um gozo que não pode simbolizar. O amor — esse espaço onde o sujeito arrisca sua consistência — pode ser tanto o lugar do milagre quanto o da catástrofe.
Ao final, o texto de Maurano e Souza oferece à psicanálise uma via para compreender o que se repete na história da cultura: o ódio ao feminino como defesa contra o real da diferença. A violência contra a mulher, nesse sentido, é o sintoma de uma luta impossível — a do sujeito contra o que nele escapa à ordem fálica, contra o que, no outro, encarna a falta que o constitui.
“A conceitualização do gozo do Outro nos parece operativa no que concerne à questão de tentar trazer alguma luz à incidência da violência direcionada às mulheres, bem como a toda uma camada da sociedade que se alinha com algo da posição feminina. Diante de todo o exposto acima, nos parece que, em certas condições peculiares, o remetimento ao feminino experimentado e recusado em si mesmo, promovendo ou ameaçando promover um aniquilamento fálico em sujeitos posicionados do lado homem, incita uma destituição subjetiva que favorece a experiência da intrusão do gozo do Outro, mobilizando defesas radicais como a aniquilação e a morte do feminino no outro, donde o feminicídio é uma de suas expressões. Trata-se aí de eliminar, a todo custo, o feminino, nem que para isso o sujeito tenha que até mesmo eliminar a si mesmo. Em certos casos, também o apassivamento relativo à experiência amorosa pode ser vivido como elemento insuportável de feminização e em certas condições patológicas trazer à cena consequências nefastas do horror ao feminino. Nesse sentido, talvez possam ser incluídas nesse mesmo contexto o horror às chamadas minorias, que, presentificando a despossessão, ameaçam o império fálico e sofrem as consequências disso. No entanto, essa última perspectiva não foi explorada neste trabalho.”
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