CLÍNICA PSICANALÍTICA
- Questões da Clínica Contemporânea -
Este texto sobre as questões da clínica contemporânea foi elaborado a partir de reflexões propostas em nosso grupo de estudo na Usina Dizer. Ele nasce, portanto, do diálogo e da troca de ideias, e pretende prolongar essa conversa, abrindo novas perguntas sobre o lugar da psicanálise hoje.
A modernidade e a invenção da psicanálise
Sob a ótica da historiografia, os marcos inaugurais da modernidade são situados em três grandes acontecimentos: a Revolução Francesa, a Revolução Industrial e a Filosofia Iluminista. Esses eventos abriram um novo tempo histórico, marcados por promessas de emancipação e desenvolvimento, mas também com novas formas de violência e alienação.
Na literatura, que se nutre da seiva da subjetividade em gestão, a modernidade encontra um marco privilegiado na obra poética e ensaística de Charles Baudelaire.
Para Walter Benjamin, As flores do mal e O pintor da vida moderna são textos fundadores da modernidade, pois neles se revela a descoberta da vida urbana, da multidão, da mercadoria e da efemeridade como experiências estéticas. É nesse contexto que surge a figura do flâneur, o poeta que percorre a cidade atento ao transitório, ao choque e ao fragmentário — em contraste com a experiência contínua, estável e totalizante típica da tradição clássica.
Para autores como Michel Foucault, Antoine Compagnon e Marshall Berman, a modernidade se caracteriza precisamente por essa experiência do transitório, do fugitivo e do contingente. Em Baudelaire, essa experiência se traduz na tensão entre a vontade de ser novo e a nostalgia da tradição, na busca paradoxal do eterno no efêmero. Como sugere Compagnon, a modernidade não se resolve em um dos polos, mas se afirma na “tensão insolúvel entre inovação e tradição”, fazendo da criação artística ao mesmo tempo ruptura e continuidade.
Freud e o mal-estar na cultura.
Freud foi um estudioso do sujeito moderno, atento aos efeitos do discurso da modernidade na constituição de um modelo de subjetividade que, apesar das transformações históricas, continua a incidir sobre a subjetividade pós-moderna ou contemporânea.
Lembremos as palavras de Bauman, na introdução de seu livro O mal-estar na pós-modernidade, quando retoma o texto freudiano O mal-estar na civilização:
“Em 1930, foi publicado em Viena um livro chamado, inicialmente, Das Unglück in der Kultur (A infelicidade na cultura) e depois rebatizado como Das Unbehagen in der Kultur (O mal-estar na cultura). O autor era Sigmund Freud. Quase simultaneamente foi publicada a tradução inglesa — para a qual Freud sugeriu o título Man’s Discomfort in Civilization (O mal-estar do homem na civilização). Como nos informa o editor inglês de Freud, James Strachey, a tradutora inglesa do livro, Joan Riviere, por algum tempo trabalhou, em vez disso, com o conceito de malaise, mas finalmente escolheu o título Civilization and its Discontents (que ficou consagrado em português como O mal-estar na civilização). É sob esse título que o provocador desafio de Freud ao folclore da modernidade penetrou em nossa consciência coletiva e, afinal, modelou o nosso pensamento a propósito das consequências — intencionais e não intencionais — da aventura moderna.”
Em 1930, Freud sublinha que, assim como os ideais de beleza, limpeza e ordem são conquistas civilizatórias, eles também são frutos de uma imposição que cobra seu preço. Não há nada de “natural” no fato de os seres humanos buscarem ou preservarem a beleza, manterem-se limpos ou observarem regras. São inclinações adquiridas, ensinadas, transmitidas culturalmente. A civilização, portanto, é um compromisso precário, sempre renegociado: em troca de segurança, o sujeito abre mão de uma parte de sua felicidade.
Em 1930, Freud sublinha que, assim como os ideais de beleza, limpeza e ordem são conquistas civilizatórias, eles também são frutos de uma imposição que cobra seu preço. Não há nada de “natural” no fato de os seres humanos buscarem ou preservarem a beleza, manterem-se limpos ou observarem regras. São inclinações adquiridas, ensinadas, transmitidas culturalmente. A civilização, portanto, é um compromisso precário, sempre renegociado: em troca de segurança, o sujeito abre mão de uma parte de sua felicidade.
“A civilização — a ordem imposta a uma humanidade naturalmente desordenada — é um compromisso, uma troca continuamente reclamada e para sempre instigada a se renegociar. O princípio de prazer está aí reduzido à medida do princípio de realidade, e as normas compreendem essa realidade que é a medida do realista. O homem civilizado trocou um quinhão das suas possibilidades de felicidade por um quinhão de segurança.”
Essa troca permanece atual, ainda que sob outra chave: hoje, trocamos parcelas de nossa liberdade pela promessa de segurança, seja nos vínculos íntimos, nas instituições ou na vida social ampliada.
Os efeitos do discurso: novos sintomasTal formulação pode ser tomada como um ponto de partida fundamental para a escuta psicanalítica. Qual seja, acolher o sujeito que chega ao nosso consultório, atravessado pelo dilema entre a busca de felicidade, a exigência de segurança e os impasses da liberdade em nossa época.
Esse dilema — felicidade, segurança e liberdade — que já era central em 1930, ganha contornos ainda mais agudos na contemporaneidade. O sujeito que chega ao consultório não se queixa apenas das repressões impostas pela cultura, como na época de Freud, mas também do excesso de liberdade aparente, da multiplicação de escolhas e da instabilidade dos laços sociais.
Como observa Bauman, a promessa de liberdade ilimitada, quando desvinculada de referências simbólicas sólidas, converte-se em angústia e sensação de desamparo.
É nesse cenário que se inscrevem muitos dos sintomas contemporâneos. Joel Birman, em seu livro, O sujeito na contemporaneidade, tece uma análise interessante dessas síndromes, delineando as patologias que se manifestam na atualidade. A discussão do autor aponta para a falha nas defesas psíquicas e simbólicas tradicionais, resultando em novas formas de sofrimento que se expressam predominantemente no corpo e na angústia do real.
Entre as síndromes destacadas, a síndrome de fadiga crônica emerge como um sintoma característico, manifestando-se como um cansaço absoluto, ausência de impulso vital e imobilidade corporal. Enquanto a medicina clínica pode atribuí-la a viroses ou deficiências vitamínicas, a psiquiatria a associa a processos depressivos, postulando uma disfunção na economia bioquímica dos neuro-hormônios.
Outra modalidade de mal-estar que se transformou em epidemia é a síndrome do pânico. Caracterizada por uma angústia iminente de morte que paralisa o indivíduo, tornando-o incapaz de reagir. Fisiologicamente, a taquicardia, a dispneia, o aumento da pressão arterial e a sudorese excessiva culminam na sensação de uma morte súbita e inevitável.
Para a psicanálise, a síndrome do pânico é frequentemente desencadeada por situações de avaliação, onde o "olhar do outro" se torna uma presença intrusiva que invade e perfura a psique do sujeito com suas exigências. Essa experiência leva a um colapso dos processos psíquicos e a um curto-circuito na temporalização, resultando na certeza da morte iminente.
Birman nos lembra da concepção freudiana da neurose de angústia (uma modalidade de neurose atual) para iluminar a compreensão do pânico contemporâneo. Freud descreveu que, nessas neuroses, o psiquismo não consegue inscrever a excitabilidade sexual em uma série simbólica, resultando em uma carência de elaboração psíquica. Em vez de conflito e simbolização, há um excesso de excitação somática que se descarrega diretamente no corpo, provocando a angústia. Esse "excesso de excitação" que se instala no psiquismo é o âmago da questão. O trauma, nesse contexto, não é mais um produto da interpretação simbólica, mas uma angústia do real, imposta violentamente, paralisando a mobilidade psíquica e incapacitando o ego de se precaver contra perigos imprevisíveis.
A prevalência da dimensão corporal na sintomatologia atual, exemplificada pelo pânico, revela uma falha crucial no mecanismo psíquico da angústia-sinal e uma fragilidade na antecipação simbólica do perigo. Isso significa que os mecanismos de proteção simbólica culturalmente instituídos perderam eficácia. Birman argumenta que a figura do "xamã" – o psicanalista - perde autoridade para o "feiticeiro" – a medicação -, indicando uma descrença nas interpretações simbólicas e uma busca por soluções mais diretas e menos mediadas para o sofrimento. Nesse cenário, a psicanálise, que se baseia no código simbólico, entra em crise, perdendo prestígio para as drogas psicofarmacológicas que prometem regular diretamente os hormônios e o mal-estar no corpo.
Em suma, Birman traça um panorama do sofrimento contemporâneo marcado pelo estresse, pela corporalização dos sintomas (fadiga crônica, pânico), pela falha da elaboração psíquica diante de um excesso de excitação, pela angústia do real e pela perda de eficácia dos mecanismos simbólicos tradicionais, culminando em uma sociedade cada vez mais medicalizada e focada no imperativo da saúde e do corpo.
A ansiedade difusa, fruto da pressão de “escolher sempre”, sem garantias. A depressão e burnout, resultantes da lógica do desempenho e da precariedade dos vínculos de trabalho e afeto. A compulsões e adições, como tentativas de obter satisfação imediata diante da impossibilidade de sustentar projetos duradouros. A fragilidade dos laços amorosos, consequência da liquidez das relações e da dificuldade de manter compromissos. São queixas frequentes nos consultórios.
Ou seja, a clínica contemporânea nos mostra, que o mal-estar não desapareceu — ele apenas se reconfigurou. A negociação entre felicidade e segurança, já indicada por Freud, é hoje atravessada pela necessidade de lidar com a fluidez das formas de vida. Cabe ao psicanalista escutar como cada sujeito singular se posiciona diante desse cenário, em suas renúncias e gozos, em seus modos de buscar felicidade e suportar a perda.
Do desamparo estrutural ao desamparo socialA dor de existir revela um sujeito mergulhado na liquides de valores, ou seja, na inconsistência do grande Outro. Quando a tradição, os valores morais e a universalidade de princípios não garantem um porto seguro de referências sociais, o sujeito cai no desamparo.
Na tentativa de responder a essa condição, busca-se afirmar a consistência do Eu por meio do corpo e da imagem. Daí a centralidade da saúde e da estética – a saúde como supremo bem e a imagem como índice de identidade. “No lugar das antigas modalidades de sofrimento centrados no conflito psíquico, nos quais se opunham os imperativos das pulsões e os das interdições morais, o mal-estar se evidencia agora como dor, inscrevendo-se nos registros do corpo, da ação e das intensidades.”
Para sustentar o ideal de vida saudável, multiplicam-se os saberes e tecnologias acessíveis: alimentação, exercícios, suplementos, novas medicações; e a uma oferta de informações inesgotáveis. Basta abrir qualquer rede social, ou recorrer ao Google para sermos inundados com uma infinidade de técnicas, sugestões e conselhos que garantirão a saúde de hoje e, claro, na velhice: quase sempre sob o selo da comprovação científica. Ao mesmo tempo, não faltam resgates de antigas práticas “caseiras”, aquelas herdadas dos avós, agora reapresentada como soluções milagrosas.
Se por um lado, o corpo está associado a saúde biológica, por outro, ele se vincula à imagem. É por esta segunda via que se constitui a cultura do narcisismo, apontada por Lasch no final da década de 70 do século passado. Lasch não estava preocupado em descrever a formação da subjetividade em termos clínicos. Ele emprega a noção de narcisismo como uma metáfora e, ao mesmo tempo, como um diagnóstico social: na modernidade tardia, marcada pelo individualismo exacerbado, pela fragilidade das instituições e pela cultura de consumo, os indivíduos se voltam para si mesmos, mas sem consistência interior. O “narcisista” de Lasch não é o sujeito do narcisismo primário freudiano, mas um tipo social: inseguro, dependente da aprovação externa, obcecado com a própria imagem e com a busca de reconhecimento público.
Por essa via, Colette Soler, propõe uma ampliação do conceito de narcisismo, reconhecendo a dimensão da cultura da imagem contemporânea, onde a imagem é um índice de identidade que se mostra e se oferece ao olhar do outro.
Soler destaca que, no mundo atual, o narcisismo da imagem alcança uma intensidade antes inimaginável. Vivemos uma verdadeira “cultura da imagem”, evidenciada pela prática de selfies – que coloca o espelho no bolso -, assim como diversas técnicas de fabricação dos corpos imaginários. Isso inclui as normas de silhueta, as industrias alimentícias, a moda que cobre os corpos, a cirurgia estética que os transforma, e práticas de marcação distintivas como tatuagens e body art.
Essas imagens carregam a gravidade de um supereu sem voz. Não falam, mas se impõem; não ordenam, mas insinuam. A lei nelas se desloca da palavra para a imagem, e é pela força muda do imaginário que o sujeito se vê convocado.
Mas a imagem, como lembra Alberto Manguel, não é mero símbolo. Não basta nela o registro do código imediato — como no sinal de tráfego, em que vermelho significa parar e verde, avançar. A imagem exige interpretação: é mensagem que se oferece ao olhar e que demanda leitura. Para lê-la, não basta o instante da percepção; requer-se um capital simbólico capaz de sustentá-la, e ainda o tempo necessário para permitir que o visto se converta em sentido, que o mostrado se abra ao trabalho da ressignificação.
Na pressa que o atravessa, o sujeito já não encontra tempo para pensar, tampouco para dar forma simbólica ao sofrimento que o habita. Incapaz de nomear sua dor, ela se inscreve no corpo e perturba o registro da ação e da intensidade. A hiperatividade torna-se uma forma de subjetivação na qual o agir precede o pensar, ou mesmo o substitui.
Essa troca permanece atual, ainda que sob outra chave: hoje, trocamos parcelas de nossa liberdade pela promessa de segurança, seja nos vínculos íntimos, nas instituições ou na vida social ampliada.
Os efeitos do discurso: novos sintomas
Tal formulação pode ser tomada como um ponto de partida fundamental para a escuta psicanalítica. Qual seja, acolher o sujeito que chega ao nosso consultório, atravessado pelo dilema entre a busca de felicidade, a exigência de segurança e os impasses da liberdade em nossa época.
Esse dilema — felicidade, segurança e liberdade — que já era central em 1930, ganha contornos ainda mais agudos na contemporaneidade. O sujeito que chega ao consultório não se queixa apenas das repressões impostas pela cultura, como na época de Freud, mas também do excesso de liberdade aparente, da multiplicação de escolhas e da instabilidade dos laços sociais.
Como observa Bauman, a promessa de liberdade ilimitada, quando desvinculada de referências simbólicas sólidas, converte-se em angústia e sensação de desamparo.
É nesse cenário que se inscrevem muitos dos sintomas contemporâneos. Joel Birman, em seu livro, O sujeito na contemporaneidade, tece uma análise interessante dessas síndromes, delineando as patologias que se manifestam na atualidade. A discussão do autor aponta para a falha nas defesas psíquicas e simbólicas tradicionais, resultando em novas formas de sofrimento que se expressam predominantemente no corpo e na angústia do real.
Entre as síndromes destacadas, a síndrome de fadiga crônica emerge como um sintoma característico, manifestando-se como um cansaço absoluto, ausência de impulso vital e imobilidade corporal. Enquanto a medicina clínica pode atribuí-la a viroses ou deficiências vitamínicas, a psiquiatria a associa a processos depressivos, postulando uma disfunção na economia bioquímica dos neuro-hormônios.
Outra modalidade de mal-estar que se transformou em epidemia é a síndrome do pânico. Caracterizada por uma angústia iminente de morte que paralisa o indivíduo, tornando-o incapaz de reagir. Fisiologicamente, a taquicardia, a dispneia, o aumento da pressão arterial e a sudorese excessiva culminam na sensação de uma morte súbita e inevitável.
Para a psicanálise, a síndrome do pânico é frequentemente desencadeada por situações de avaliação, onde o "olhar do outro" se torna uma presença intrusiva que invade e perfura a psique do sujeito com suas exigências. Essa experiência leva a um colapso dos processos psíquicos e a um curto-circuito na temporalização, resultando na certeza da morte iminente.
Birman nos lembra da concepção freudiana da neurose de angústia (uma modalidade de neurose atual) para iluminar a compreensão do pânico contemporâneo. Freud descreveu que, nessas neuroses, o psiquismo não consegue inscrever a excitabilidade sexual em uma série simbólica, resultando em uma carência de elaboração psíquica. Em vez de conflito e simbolização, há um excesso de excitação somática que se descarrega diretamente no corpo, provocando a angústia. Esse "excesso de excitação" que se instala no psiquismo é o âmago da questão. O trauma, nesse contexto, não é mais um produto da interpretação simbólica, mas uma angústia do real, imposta violentamente, paralisando a mobilidade psíquica e incapacitando o ego de se precaver contra perigos imprevisíveis.
A prevalência da dimensão corporal na sintomatologia atual, exemplificada pelo pânico, revela uma falha crucial no mecanismo psíquico da angústia-sinal e uma fragilidade na antecipação simbólica do perigo. Isso significa que os mecanismos de proteção simbólica culturalmente instituídos perderam eficácia. Birman argumenta que a figura do "xamã" – o psicanalista - perde autoridade para o "feiticeiro" – a medicação -, indicando uma descrença nas interpretações simbólicas e uma busca por soluções mais diretas e menos mediadas para o sofrimento. Nesse cenário, a psicanálise, que se baseia no código simbólico, entra em crise, perdendo prestígio para as drogas psicofarmacológicas que prometem regular diretamente os hormônios e o mal-estar no corpo.
Em suma, Birman traça um panorama do sofrimento contemporâneo marcado pelo estresse, pela corporalização dos sintomas (fadiga crônica, pânico), pela falha da elaboração psíquica diante de um excesso de excitação, pela angústia do real e pela perda de eficácia dos mecanismos simbólicos tradicionais, culminando em uma sociedade cada vez mais medicalizada e focada no imperativo da saúde e do corpo.
A ansiedade difusa, fruto da pressão de “escolher sempre”, sem garantias. A depressão e burnout, resultantes da lógica do desempenho e da precariedade dos vínculos de trabalho e afeto. A compulsões e adições, como tentativas de obter satisfação imediata diante da impossibilidade de sustentar projetos duradouros. A fragilidade dos laços amorosos, consequência da liquidez das relações e da dificuldade de manter compromissos. São queixas frequentes nos consultórios.
Ou seja, a clínica contemporânea nos mostra, que o mal-estar não desapareceu — ele apenas se reconfigurou. A negociação entre felicidade e segurança, já indicada por Freud, é hoje atravessada pela necessidade de lidar com a fluidez das formas de vida. Cabe ao psicanalista escutar como cada sujeito singular se posiciona diante desse cenário, em suas renúncias e gozos, em seus modos de buscar felicidade e suportar a perda.
Do desamparo estrutural ao desamparo social
A dor de existir revela um sujeito mergulhado na liquides de valores, ou seja, na inconsistência do grande Outro. Quando a tradição, os valores morais e a universalidade de princípios não garantem um porto seguro de referências sociais, o sujeito cai no desamparo.
Na tentativa de responder a essa condição, busca-se afirmar a consistência do Eu por meio do corpo e da imagem. Daí a centralidade da saúde e da estética – a saúde como supremo bem e a imagem como índice de identidade. “No lugar das antigas modalidades de sofrimento centrados no conflito psíquico, nos quais se opunham os imperativos das pulsões e os das interdições morais, o mal-estar se evidencia agora como dor, inscrevendo-se nos registros do corpo, da ação e das intensidades.”
Para sustentar o ideal de vida saudável, multiplicam-se os saberes e tecnologias acessíveis: alimentação, exercícios, suplementos, novas medicações; e a uma oferta de informações inesgotáveis. Basta abrir qualquer rede social, ou recorrer ao Google para sermos inundados com uma infinidade de técnicas, sugestões e conselhos que garantirão a saúde de hoje e, claro, na velhice: quase sempre sob o selo da comprovação científica. Ao mesmo tempo, não faltam resgates de antigas práticas “caseiras”, aquelas herdadas dos avós, agora reapresentada como soluções milagrosas.
Se por um lado, o corpo está associado a saúde biológica, por outro, ele se vincula à imagem. É por esta segunda via que se constitui a cultura do narcisismo, apontada por Lasch no final da década de 70 do século passado. Lasch não estava preocupado em descrever a formação da subjetividade em termos clínicos. Ele emprega a noção de narcisismo como uma metáfora e, ao mesmo tempo, como um diagnóstico social: na modernidade tardia, marcada pelo individualismo exacerbado, pela fragilidade das instituições e pela cultura de consumo, os indivíduos se voltam para si mesmos, mas sem consistência interior. O “narcisista” de Lasch não é o sujeito do narcisismo primário freudiano, mas um tipo social: inseguro, dependente da aprovação externa, obcecado com a própria imagem e com a busca de reconhecimento público.
Por essa via, Colette Soler, propõe uma ampliação do conceito de narcisismo, reconhecendo a dimensão da cultura da imagem contemporânea, onde a imagem é um índice de identidade que se mostra e se oferece ao olhar do outro.
Soler destaca que, no mundo atual, o narcisismo da imagem alcança uma intensidade antes inimaginável. Vivemos uma verdadeira “cultura da imagem”, evidenciada pela prática de selfies – que coloca o espelho no bolso -, assim como diversas técnicas de fabricação dos corpos imaginários. Isso inclui as normas de silhueta, as industrias alimentícias, a moda que cobre os corpos, a cirurgia estética que os transforma, e práticas de marcação distintivas como tatuagens e body art.
Essas imagens carregam a gravidade de um supereu sem voz. Não falam, mas se impõem; não ordenam, mas insinuam. A lei nelas se desloca da palavra para a imagem, e é pela força muda do imaginário que o sujeito se vê convocado.
Mas a imagem, como lembra Alberto Manguel, não é mero símbolo. Não basta nela o registro do código imediato — como no sinal de tráfego, em que vermelho significa parar e verde, avançar. A imagem exige interpretação: é mensagem que se oferece ao olhar e que demanda leitura. Para lê-la, não basta o instante da percepção; requer-se um capital simbólico capaz de sustentá-la, e ainda o tempo necessário para permitir que o visto se converta em sentido, que o mostrado se abra ao trabalho da ressignificação.
Na pressa que o atravessa, o sujeito já não encontra tempo para pensar, tampouco para dar forma simbólica ao sofrimento que o habita. Incapaz de nomear sua dor, ela se inscreve no corpo e perturba o registro da ação e da intensidade. A hiperatividade torna-se uma forma de subjetivação na qual o agir precede o pensar, ou mesmo o substitui.
“ É desse fundo difuso e indeterminado que se pode depreender algumas das modalidade específica da ação nas subjetividades contemporâneas. A explosividade, antes de tudo. Tudo se passa como se essas não conseguissem mais conter o excesso no seu território interior, para em seguida simbolizá-lo e transformá-lo naquilo que Freud denominou ação específica, isto é, numa ação adequada ao contexto em que uma dada afetação foi colocada para o psiquismo. Diante dessa impossibilidade, a descarga de excitabilidade se impõe sob a forma de manifestações emocionais incontroláveis. Com isso, a irritabilidade é uma constante na forma de ser das individualidades atuais, marca insofismável do seu ser.”
A violência se impõe como uma invariante sempre presente nas subjetividades, que se mostram cada vez mais frequente e corriqueira. “Tudo se passa como se o sujeito tivesse perdido a crença na possiblidade de resolver e superar os obstáculos que se colocam para si pelo discurso e pela retórica, isto é, pela negociação com os outros”.
Ainda dentro dessa borda da ação, o autor chama a atenção para a compulsão, como uma modalidade de agir caracterizada pela repetição, “já que o alvo da ação não é jamais alcançado”. Sob o mecanismo da compulsão encontra-se a toxicomania, a bulimia, a anorexia, e o consumismo.
Conclusão e abertura Esse é um percurso para abertura das discussões do próximo encontro. Lembramos que este percurso não pretende encerrar o tema, mas apenas delinear algumas coordenadas para situar a clínica contemporânea. Trata-se, antes, de uma abertura: um convite a seguir interrogando como esses impasses se inscrevem na experiência singular de cada sujeito. A partir daqui, o caminho se prolonga na discussão de casos clínicos e na elaboração compartilhada, onde teoria e prática poderão encontrar-se naquilo que a clínica sempre exige: a invenção de respostas singulares diante do mal-estar de nosso tempo.
Bibliografia:1. Bauman, Zygmunt, O mal-estar na pós-modernidade, Ed. Jorge Zahar, 1998.2. Berman, Marshall, Tudo que é solido desmancha no ar, Ed. Companhia das Letras, 1986.3. Benjamin, Walter, Charles Baudelaire: um lírico no auge do Capitalismo, in: Obras Escolhidas III, Ed. Brasiliense, 19894. Birman, Joel, O sujeito na Contemporaneidade, Ed. Civilização Brasileira, 20125. Compagnon, Antoine, Os antimodernos, Ed. UFMS, 20146. Freud, S. O mal-estar na Cultura, Ed. Autêntica, 20207. Foucault, Michel, As palavras e as coisas, Ed. Martins Fontes, 20008. _______________, Ditos e escritos I, Ed. Florence Universitária, 19999. Lasch, Christopher, A cultura do narcisismo – a vida americana em uma era de expectativas decrescente. Ed. Fósforo, 202310. Manguel, Alberto, Lendo Imagens, Ed. Companhia das Letras, 200111. Soler, Colette, Um outro Narciso, Ed. Aller, 2012
1. Bauman, 1998, p. 7 2. Birman, 2012, p.65 3. Birman, pg. 82
Maria Holthausen
A violência se impõe como uma invariante sempre presente nas subjetividades, que se mostram cada vez mais frequente e corriqueira. “Tudo se passa como se o sujeito tivesse perdido a crença na possiblidade de resolver e superar os obstáculos que se colocam para si pelo discurso e pela retórica, isto é, pela negociação com os outros”.
Ainda dentro dessa borda da ação, o autor chama a atenção para a compulsão, como uma modalidade de agir caracterizada pela repetição, “já que o alvo da ação não é jamais alcançado”. Sob o mecanismo da compulsão encontra-se a toxicomania, a bulimia, a anorexia, e o consumismo.
Conclusão e abertura
Esse é um percurso para abertura das discussões do próximo encontro. Lembramos que este percurso não pretende encerrar o tema, mas apenas delinear algumas coordenadas para situar a clínica contemporânea. Trata-se, antes, de uma abertura: um convite a seguir interrogando como esses impasses se inscrevem na experiência singular de cada sujeito. A partir daqui, o caminho se prolonga na discussão de casos clínicos e na elaboração compartilhada, onde teoria e prática poderão encontrar-se naquilo que a clínica sempre exige: a invenção de respostas singulares diante do mal-estar de nosso tempo.
Bibliografia:
1. Bauman, Zygmunt, O mal-estar na pós-modernidade, Ed. Jorge Zahar, 1998.
2. Berman, Marshall, Tudo que é solido desmancha no ar, Ed. Companhia das Letras, 1986.
3. Benjamin, Walter, Charles Baudelaire: um lírico no auge do Capitalismo, in: Obras Escolhidas III, Ed. Brasiliense, 1989
4. Birman, Joel, O sujeito na Contemporaneidade, Ed. Civilização Brasileira, 2012
5. Compagnon, Antoine, Os antimodernos, Ed. UFMS, 2014
6. Freud, S. O mal-estar na Cultura, Ed. Autêntica, 2020
7. Foucault, Michel, As palavras e as coisas, Ed. Martins Fontes, 2000
8. _______________, Ditos e escritos I, Ed. Florence Universitária, 1999
9. Lasch, Christopher, A cultura do narcisismo – a vida americana em uma era de expectativas decrescente. Ed. Fósforo, 2023
10. Manguel, Alberto, Lendo Imagens, Ed. Companhia das Letras, 2001
11. Soler, Colette, Um outro Narciso, Ed. Aller, 2012
1. Bauman, 1998, p. 7
2. Birman, 2012, p.65
3. Birman, pg. 82
Maria Holthausen
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