Postagens

CLÍNICA PSICANALÍTICA

Imagem
- Questões da Clínica Contemporânea - Este texto sobre as questões da clínica contemporânea foi elaborado a partir de reflexões propostas em nosso grupo de estudo na Usina Dizer. Ele nasce, portanto, do diálogo e da troca de ideias, e pretende prolongar essa conversa, abrindo novas perguntas sobre o lugar da psicanálise hoje.  A modernidade e a invenção da psicanálise Sob a ótica da historiografia, os marcos inaugurais da modernidade são situados em três grandes acontecimentos: a Revolução Francesa, a Revolução Industrial e a Filosofia Iluminista. Esses eventos abriram um novo tempo histórico, marcados por promessas de emancipação e desenvolvimento, mas também com novas formas de violência e alienação. Na literatura, que se nutre da seiva da subjetividade em gestão, a modernidade encontra um marco privilegiado na obra poética e ensaística de Charles Baudelaire.  Para Walter Benjamin, As flores do mal e O pintor da vida moderna são textos fundadores da modernidade, pois neles...

FREUD: O EXÍLIO, O SONHO E O LEGADO DO INCONSCIENTE

Imagem
Sigmund Freud: vida, obra e herança do criador da psicanálise No dia 23 de setembro de 1939, em Londres, morreu Sigmund Freud. Doente, exilado, enfraquecido pela longa batalha contra um câncer na mandíbula, Freud morreu sob a sombra da guerra que já tomava a Europa. Mas o destino singular de sua vida e obra havia se consolidado: nada seria igual depois da invenção da psicanálise. Freud nasceu em 1856, em Freiberg, na Morávia — então parte do Império Austro-Húngaro, hoje território da República Tcheca. Descendente de uma família judia, cresceu em Viena, cidade onde viveria a maior parte de sua vida. Esse pertencimento judaico, em uma Europa atravessada pelo antissemitismo, nunca deixou de marcar seu percurso. Freud não era religioso, mas carregava em sua herança cultural e, na condição de cidadão do não-lugar, forjou um traço fundamental de sua sensibilidade crítica. Estudioso brilhante, iniciou-se na medicina e na neurologia, pesquisando sobre o sistema nervoso e trabalhando com pa...

A ARTE DE LER O QUE SE VÊ: UM PASSEIO COM MANGUEL

Imagem
"As imagens que formam nosso mundo são símbolos, sinais, mensagens e alegorias. Ou talvez sejam apenas presenças vazias que completamos com o nosso desejo, experiência, questionamento e remorso. Qualquer que seja o caso, as imagens, assim como as palavras, são a matéria de que somos feitos." A leitura sempre foi percebida como um gesto silencioso, fechado sobre as páginas de um livro. Mas Alberto Manguel nos lembra que esse gesto não pertence apenas às palavras. Ele diz: as imagens também se leem. Não como se lê uma legenda de jornal, mas como se lê um sonho. É preciso escutar seus silêncios, aceitar que a pintura se dirija a nós sem nunca se deixar decifrar por completo. Ao abrir Lendo Imagens , não entramos numa história da arte. Entramos numa sala cheia de quadros que nos olham. Giotto, Caravaggio, Picasso, entre tantos outros. O que fazer diante deles? A maior parte dos visitantes passa rápido, como se as pinturas fossem apenas cenários de um museu. Manguel, ao contrário,...

BOUVARD E PÉCUCHET: O DELÍRIO DA PERFEIÇÃO E A ESTRURA OBSESSIVA

Imagem
Seguidamente, glorificaram as vantagens das ciências: quantas coisas havia para conhecer! Quantas investigações — se para elas houvesse tempo! Infelizmente, o ganha-pão tomava todo; e ergueram os braços de espanto, quase se abraçaram por cima da mesa, ao descobrir que eram ambos copistas, Bouvard em uma casa de comércio, Pécuchet no Ministério da Marinha — o que não o impedia de consagrar, todas as tardes, alguns momentos ao estudo. Entre a comédia do saber e a tragédia do gozo No romance inacabado " Bouvard e Pécuchet" , Gustave Flaubert entrega ao leitor uma espécie de enciclopédia do fracasso humano diante do saber. Dois copistas, ao receber uma herança, abandonam Paris para se dedicar à vida no campo. O que poderia ser um retorno idílico à natureza transforma-se numa odisseia patética, cômica e angustiante. Os dois amigos mergulham em múltiplas áreas do conhecimento — agricultura, medicina, pedagogia, química, filosofia, religião — numa tentativa incessante de dominar o m...

A ESCUTA ANÁLITICA DOS SONHOS

Imagem
  Fecham-se os olhos e o inconsciente fala em imagens. Abrem-se, e ele se disfarça em palavras. No sonho, desejo e censura dançam sob a lógica da condensação e do deslocamento, criando enigmas que pedem mais escuta do que tradução. Na clínica, um relato onírico pode abrir frestas onde o discurso de vigília se cala, deixando emergir sentidos inesperados. Escutar sonhos é sustentar o mistério e seguir as trilhas da livre associação. Não se trata de decifrar charadas noturnas, mas de caminhar com o analisante na descoberta do desejo que o habita. O sonho é a escuta clínica aos enigmas do inconsciente Fecha-se os olhos e alucina-se; torna-se a abri-los e pensa-se com palavras. 1 Desde que Freud publicou “A Interpretação dos Sonhos”, em 1900, a psicanálise passou a contar com um território privilegiado para ouvir o inconsciente: o sonho. Nele, condensam-se e se deslocam imagens, afetos e narrativas que, sob a vigília, encontrariam resistência para se apresentar. Escutar um sonho, portan...

O MURMÚRIO DAS COISAS

Imagem
O poema-coisa em Rilke e a soberania perdida do mundo (Para aqueles que ainda sabem escutar o que não é dito) Há momentos na história em que a linguagem se desfaz. Não por excesso de ruído apenas, mas por uma espécie de deslealdade ontológica: ela já não corresponde ao mundo. Os signos multiplicam-se, inflacionam-se, tornam-se máscaras ocas. O mundo, então, recua. As coisas calam. Ou, pior: falam em nossa linguagem, e por isso mesmo perdem a sua. Rainer Maria Rilke compreendeu esse exílio do real com um pressentimento raro. Seus poemas-coisa não são objetos poéticos. São, ao contrário, testemunhos da tentativa de devolver às coisas a sua voz — não uma voz humana, não uma voz lírica, mas um murmúrio denso, impessoal, que sobe da matéria quando o sujeito se cala. Sob o olhar de Rodin — escultor de presenças e não de formas —, Rilke desvia-se do simbolismo para uma poética da escuta. Deixa de usar as palavras como espelhos da alma para fazer delas vasos: recipientes onde o objeto se insta...

PSICANÁLISE: CURA E SINTOMA

Imagem
  O que significa o termo “cura” em psicanálise? E o sintoma, é só algo a ser eliminado?  Nesse fragmento da primeira aula de seu seminário 'Coisas de Fineza', Jacques-Alain Miller lança luz sobre essas questões, mostrando como a teoria lacaniana evoluiu para uma 'segunda clínica'. Uma percepção essencial para entender as nuances que transformaram a forma de pensar a experiência analítica." Fragmento do Seminário: COISAS DE FINEZA EM PSICANÁLISE Jacques-Alain Miller 12 de novembro de 2008 Pois bem, começarei por dar meu título. É uma questão que me serve de apoio, de guia, toda suave, ao passo que meu discurso talvez não seja. O título é Coisas de fineza em psicanálise. Ano passado sonhei que este ano me manteria ancorado no porto. Eis-me aqui, no entanto, embarcando com vocês para mais uma de nossas novas aventuras ao mar, sempre recomeçadas, votado a arfar nos remos. Há aqui, porém, uma escolha forçada. Se preciso remar com força é porque o movimento do mundo o e...

QUESTÕES DE GÊNERO E PSICANÁLISE

Imagem
O que realmente define a diferença sexual? E, ainda: será que existe uma única resposta para esta questão? No texto a seguir, François Ansermet nos leva a uma jornada psicanalítica para compreender que a questão transcende a mera biologia. Ele explora as dimensões subjetivas e sociais da identidade de gênero, propondo uma perspectiva clínica que valoriza a singularidade de cada ser, recusando-se a impor normas universais. Uma leitura relevante para quem busca aprofundar o debate. Eleger o próprio sexo: usos contemporâneos da diferença sexual François Ansermet 1     “Não se trata de uma eleição e sim de um fato”, afirmou há pouco tempo um paciente de 15 anos que veio me consultar por causa de seu projeto de mudar de sexo. De fato, sente-se capturado em um sexo que não lhe corresponde; disse experimentar-se desde sempre como uma menina presa em um corpo de menino e quer, então, mudar de sexo e espera o momento em que a cirurgia e a endocrinologia lhe permitirão realizar a metamo...