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BOUVARD E PÉCUCHET: O DELÍRIO DA PERFEIÇÃO E A ESTRURA OBSESSIVA

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Seguidamente, glorificaram as vantagens das ciências: quantas coisas havia para conhecer! Quantas investigações — se para elas houvesse tempo! Infelizmente, o ganha-pão tomava todo; e ergueram os braços de espanto, quase se abraçaram por cima da mesa, ao descobrir que eram ambos copistas, Bouvard em uma casa de comércio, Pécuchet no Ministério da Marinha — o que não o impedia de consagrar, todas as tardes, alguns momentos ao estudo. Entre a comédia do saber e a tragédia do gozo No romance inacabado " Bouvard e Pécuchet" , Gustave Flaubert entrega ao leitor uma espécie de enciclopédia do fracasso humano diante do saber. Dois copistas, ao receber uma herança, abandonam Paris para se dedicar à vida no campo. O que poderia ser um retorno idílico à natureza transforma-se numa odisseia patética, cômica e angustiante. Os dois amigos mergulham em múltiplas áreas do conhecimento — agricultura, medicina, pedagogia, química, filosofia, religião — numa tentativa incessante de dominar o m...

A ESCUTA ANÁLITICA DOS SONHOS

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  Fecham-se os olhos e o inconsciente fala em imagens. Abrem-se, e ele se disfarça em palavras. No sonho, desejo e censura dançam sob a lógica da condensação e do deslocamento, criando enigmas que pedem mais escuta do que tradução. Na clínica, um relato onírico pode abrir frestas onde o discurso de vigília se cala, deixando emergir sentidos inesperados. Escutar sonhos é sustentar o mistério e seguir as trilhas da livre associação. Não se trata de decifrar charadas noturnas, mas de caminhar com o analisante na descoberta do desejo que o habita. O sonho é a escuta clínica aos enigmas do inconsciente Fecha-se os olhos e alucina-se; torna-se a abri-los e pensa-se com palavras. 1 Desde que Freud publicou “A Interpretação dos Sonhos”, em 1900, a psicanálise passou a contar com um território privilegiado para ouvir o inconsciente: o sonho. Nele, condensam-se e se deslocam imagens, afetos e narrativas que, sob a vigília, encontrariam resistência para se apresentar. Escutar um sonho, portan...

O MURMÚRIO DAS COISAS

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O poema-coisa em Rilke e a soberania perdida do mundo (Para aqueles que ainda sabem escutar o que não é dito) Há momentos na história em que a linguagem se desfaz. Não por excesso de ruído apenas, mas por uma espécie de deslealdade ontológica: ela já não corresponde ao mundo. Os signos multiplicam-se, inflacionam-se, tornam-se máscaras ocas. O mundo, então, recua. As coisas calam. Ou, pior: falam em nossa linguagem, e por isso mesmo perdem a sua. Rainer Maria Rilke compreendeu esse exílio do real com um pressentimento raro. Seus poemas-coisa não são objetos poéticos. São, ao contrário, testemunhos da tentativa de devolver às coisas a sua voz — não uma voz humana, não uma voz lírica, mas um murmúrio denso, impessoal, que sobe da matéria quando o sujeito se cala. Sob o olhar de Rodin — escultor de presenças e não de formas —, Rilke desvia-se do simbolismo para uma poética da escuta. Deixa de usar as palavras como espelhos da alma para fazer delas vasos: recipientes onde o objeto se insta...

PSICANÁLISE: CURA E SINTOMA

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  O que significa o termo “cura” em psicanálise? E o sintoma, é só algo a ser eliminado?  Nesse fragmento da primeira aula de seu seminário 'Coisas de Fineza', Jacques-Alain Miller lança luz sobre essas questões, mostrando como a teoria lacaniana evoluiu para uma 'segunda clínica'. Uma percepção essencial para entender as nuances que transformaram a forma de pensar a experiência analítica." Fragmento do Seminário: COISAS DE FINEZA EM PSICANÁLISE Jacques-Alain Miller 12 de novembro de 2008 Pois bem, começarei por dar meu título. É uma questão que me serve de apoio, de guia, toda suave, ao passo que meu discurso talvez não seja. O título é Coisas de fineza em psicanálise. Ano passado sonhei que este ano me manteria ancorado no porto. Eis-me aqui, no entanto, embarcando com vocês para mais uma de nossas novas aventuras ao mar, sempre recomeçadas, votado a arfar nos remos. Há aqui, porém, uma escolha forçada. Se preciso remar com força é porque o movimento do mundo o e...

QUESTÕES DE GÊNERO E PSICANÁLISE

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O que realmente define a diferença sexual? E, ainda: será que existe uma única resposta para esta questão? No texto a seguir, François Ansermet nos leva a uma jornada psicanalítica para compreender que a questão transcende a mera biologia. Ele explora as dimensões subjetivas e sociais da identidade de gênero, propondo uma perspectiva clínica que valoriza a singularidade de cada ser, recusando-se a impor normas universais. Uma leitura relevante para quem busca aprofundar o debate. Eleger o próprio sexo: usos contemporâneos da diferença sexual François Ansermet 1     “Não se trata de uma eleição e sim de um fato”, afirmou há pouco tempo um paciente de 15 anos que veio me consultar por causa de seu projeto de mudar de sexo. De fato, sente-se capturado em um sexo que não lhe corresponde; disse experimentar-se desde sempre como uma menina presa em um corpo de menino e quer, então, mudar de sexo e espera o momento em que a cirurgia e a endocrinologia lhe permitirão realizar a metamo...

DO TRAUMA AO ACONTECIMENTO TRAUMÁTICO

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  Para o senso comum, trauma é um acontecimento violento que produz dor. No entanto, em seu texto, Heloisa Caldas nos lembra que Freud já via o trauma como um trabalho psíquico, algo que se desenrola no inconsciente. Ou seja, não é só o que aconteceu, mas como nossa mente lida com isso ao longo do tempo. E tem mais: o trauma não é algo que dá para prevenir ou curar rapidamente. A psicanálise não busca eliminar o trauma, mas dar espaço para que ele seja elaborado. Diferente da abordagem psiquiátrica, que muitas vezes tenta "resolver" o trauma com diagnósticos como o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), a psicanálise entende que o trauma faz parte da construção subjetiva de cada um. TRAUMA E LINGUAGEM: ACORDA Heloisa Caldas Agradeço a oportunidade que os organizadores dessas jornadas me deram de falar nessa plenária. Agradeço também a Marie-Hélène Brousse pela atenção de ler e comentar minha intervenção. Trauma não é um termo específico da psicanálise. Provavelmen...