domingo, setembro 01, 2013

A clínica Psicanalítica



"A Clínica" Psicanalítica, 
fragmento do texto de Marcio Peter de Souza Leite



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Existem várias maneiras de se abordar a clínica. Uma são os casos clínicos de Freud; outras seriam os escritos técnicos, que na verdade são teorizações, indicando que a oposição “teoria e técnica” merece sempre uma ressalva. A tradição de Freud é propor a clínica psicanalítica como a clínica do particular. Por isso, não se poderá extrapolar a estrutura psíquica de um paciente independentemente da situação em que ela foi investigada, porque o analista participa do campo em sua investigação.

Então, ao propor-se o estudo de um caso clínico, o que estaria se fazendo, seria o estudo do vínculo analítico em que o analista está envolvido.
Uma outra possibilidade de refletir-se sobre os procedimentos do analista, seria pela procura de invariantes das ações, atitudes e posturas que ele toma na situação analítica, verificando-se a constância de algumas ações, independentemente das particularidades do caso, o que Lacan fez num texto de 1956, que se chama “Direção do tratamento e os princípios do seu poder”.

Outra questão que se impõe quando se fala da atividade do analista é quanto à sugestão, feita por Freud, de que a psicanálise é uma arte, sendo que é arte o que não é técnica, é arte o que supera a técnica. A técnica seria o estabelecimento de procedimentos únicos, invariáveis, que seriam eficazes em qualquer tipo de situação. É o que não existe na psicanálise. O analista deve ter um saber sobre os seus procedimentos, mas de maneira alguma deve utilizá-los de maneira mecânica: precisa adequá-los à particularidade de cada caso.

No horizonte de Lacan, como interlocutor epistemológico esteve Karl Popper, que estabeleceu os “critérios de cientificidade”, segundo os quais uma prática, para ser científica, deveria obedecer-lhes. Seria inviável a psicanálise obedecer a esses critérios, pois a prática analítica não é falsificável, o que contradiz o critério de cientificidade fundamental.

O resultado de uma análise depende da subjetivação que o paciente fez dela, não havendo meios de objetivá-la. Nesse sentido, os métodos estatísticos ou outros métodos usados nas ciências exatas seriam incompatíveis com a prática analítica.

Por isso, Lacan dirá que a psicanálise é uma retórica, ou seja, uma combinatória de formas de se usar a linguagem. Lacan afirmou que cada analista teria que reinventar a psicanálise e dar conta da própria descoberta. Freud, propunha a prática da psicanálise como um jogo de xadrez, em que pode-se ter uma convenção das aberturas e finais, mas o meio do jogo é impossível de ser codificado. Embora haja regras precisas do que se deve fazer, dependeria da criatividade de cada jogador superar esses programas e ultrapassar a possibilidade de ser um jogador unicamente mecânico.

Para pensar o que o analista faz, Freud usou a analogia da tangente, que é uma reta que se aproxima de um círculo mas nunca o toca, apenas tende a se aproximar dele. Com esse recurso, Freud tentava definir a prática analítica, na medida em que haveria uma certa impossibilidade de se concretizar o que ela realmente faz, e preferiu a via negativa, dizendo o que ela não faz.

Respondendo à pergunta sobre o que o analista faz, Lacan disse: “Dirige o tratamento”. O que o analista faz é estabelecer e administrar um vínculo discursivo, diferente do usual. O vínculo psicanalítico é um vínculo social inventado por Freud. Uma pessoa procura o analista porque supõe nele um saber, paga por isso e não recebe necessariamente uma resposta.

Ao vínculo social, Lacan chamou de discurso, o que na teoria lacaniana é passível de ser representado na sua estrutura. Segundo Lacan, a estrutura dos discursos supõe um agente, que é o que dentro de um vínculo social parte de alguém em direção ao Outro. Então, todo vínculo social também supõe sempre o Outro.

Na situação analítica, que é uma situação a dois, um dito parte do agente e se situa numa dimensão de verdade atribuída ao Outro, o que condiciona uma “produção”.

Em qualquer situação de vinculação humana há sempre um sujeito que discursivamente age no outro ao se sustentar numa verdade, e a ação de um no Outro terá como efeito a produção de saber ou verdade etc.
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Neste discurso – o discurso do analista - o objeto causa do desejo está no lugar de agente. Esse discurso indica o que o analista faz, pois a função do analista é estabelecer um tipo de vínculo onde ele está no lugar de agente como semblante do objeto a.

A finalidade da análise é produzir S1, é fazer o sujeito produzir sua “verdade” por ele mesmo. Esse discurso é o contrário do discurso do mestre. O discurso analítico se instalará quando o objeto causa do desejo estiver no lugar de agente, condicionando como produção uma verdade sobre o sujeito.

A única maneira de o analista instalar o discurso analítico, de dirigir a cura, é não dirigir o paciente. Ele não dá conselhos, pois os conselhos o colocariam do lado do mestre e essa é a posição do psicoterapeuta, que supõe que sabe o que falta ao outro.

Dentro dos conselhos técnicos, Freud alertou para esse ponto exigindo a neutralidade do analista. Para ele, o analista deve deixar em suspenso seus próprios valores, sua verdade, sua experiência, para poder investigar a do outro.

Um outro procedimento para o analista instalar o discurso analítico é fazer o sujeito aplicar a regra fundamental da associação livre. O analista, ao não identificar a sua verdade com a do paciente, encontra essa verdade no próprio paciente.

A psicanálise usa o método da associação livre para descobrir a verdade do paciente, e pede a ele que diga tudo o que lhe passar pela cabeça, sem que faça nenhum tipo de censura. Sem esse método de investigação seria impossível haver psicanálise e não haveria discurso analítico.

Para uma maior eficácia nesta investigação, utiliza-se de variáveis técnicas, que são uma questão de estilo, de convenção; o divã, por exemplo. Freud dizia que usava o divã por uma questão de preferência pessoal, pois não conseguia atender dez pacientes seguidos olhando para eles todo o tempo. Freud também percebeu que, para facilitar a obediência à regra fundamental, deveria sair do campo escópico do paciente, pois suas reações certamente influiriam na concatenação de ideias do analisante.

Se o paciente observar o analista, a associação não será tão livre assim, porque qualquer reação do analista pode, inconscientemente, significar algo para esse paciente e produzir uma modificação em seu curso associativo. A técnica da exclusão do analista do campo visual do paciente é uma forma de tornar mais pura a investigação, e de aproximar-se a uma condição em que o único estímulo para a associação livre seja o próprio psiquismo do paciente.
Há conselhos técnicos que são seguidos com certo exagero em determinadas comunidades analíticas. Algumas têm por consenso que o consultório do analista deve ser impessoal, que o analista deve trajar-se discretamente e, de preferência, de um modo formal, com vestimentas que despersonalizem, com o objetivo de poder transformá-lo num objeto sem significações.

Cada analista lidará com essas variáveis de acordo com o modelo da própria análise, visando estabelecer o discurso analítico. Certos analistas, por mais que mimetizem a prática analítica de Lacan, nunca a produzem; por outro lado, outros, mesmo tendo características particulares bastante evidenciadas, possibilitarão o discurso analítico com facilidade.

A frequência das sessões também poderia entrar nessas considerações, pois constitui uma das formas de o analista manter o discurso analítico. De qualquer forma, a priori, não há por que um número de sessões deva ser preestabelecido. Freud o fazia porque um de seus critérios técnicos rezava que a análise só seria análise quando houvesse transferência, e uma forma de consegui-la com maior eficácia era transformando o analista em “resto diurno”. Freud afirmava que quanto maior a frequência das sessões mais facilmente o analista se instalava como resto diurno. É evidente que, estando presente na vida do paciente diariamente, o analista passaria a ser um resto diurno privilegiado.


Porém, cada analista saberá encontrar o ritmo que tiver a ver com a sua pessoa, com o seu estilo, com a sua forma de produzir a eficácia desse método, sem necessariamente recorrer a padronizações exteriores à sua própria escolha.


FONTE: site www.marciopeter.com.br/

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