terça-feira, abril 28, 2015

Dança e Poética Contemporânea




A Desfazer-se
Vera Mantero


A cultura está em erosão.
O espírito está em erosão, estão os dois a desfazer-se, estão a desaparecer.

O espírito pode entreter-se com coisas ricas ou pode entreter-se com coisas pobres. O espírito é uma criatura muito ávida de ocupação, precisa de se ocupar-se constantemente. O espírito deve ser o único pedaço de nós que ficou criança e que precisa de estar sempre entretido com uma qualquer coisa. Se dissermos a coisa assim, a palavra “entretenimento” torna-se muito menos pecaminosa. enquanto me entretenho com o Glenn Gould e as suas variações Goldberg eu não morro e nada morre à minha volta. Necessitamos das artes para não morrermos, as artes falam conosco, as artes dizem-nos coisas, não se calam,  não nos deixam no silêncio, não nos deixam naquele silêncio em que se morre de tédio. Naquele silêncio das casas, aquele silêncio das casas onde não há livros e uma pessoa anda de assoalhada para assoalhada cheia de fome de livros, casas burguesas, muitas vezes, onde não falta dinheiro para pôr as paredes a falar mas onde o espírito já deve ter morrido, porque os mortos não precisam de se entreter, os mortos não precisam que falem com eles, não precisam que lhes contem nada, não precisam de fazer uma leitura das coisas, ou precisamente não querem fazer leitura nenhuma das coisas, não se querem ler nem se querem saber. É sempre duro apercebermo-nos de que estamos mortos, os mortos endinheirados. Vejo as artes como um resíduo, aquilo que resta de uma série de coisas que o ser humano gosta de fazer para manter o seu espírito num determinado ponto de possibilidade. talvez não só de possibilidade como de interesse. um ponto em que é possível e interessante existir. estas coisas que mantêm o espírito nesse ponto são coisas que algures, não sei se no tempo ou no espaço, estão espalhadas pela vida das pessoas, estão espalhadas pela existência em geral, e que aqui, ou agora, se confinaram a determinados locais, a determinados objetosúltimos redutos dessas coisas. O ser humano precisa de ler o mundo. Precisa de ir fazendo leituras do mundo, provavelmente não para entende-lo, para explicar qualquer coisa, para arrumar de vez um assunto, mas simplesmente para se situar num ponto, para ter um ponto onde se possa estar, dos milhares de pontos possíveis onde se pode estar. A arte é pensar, é fazer uma leitura do mundo. (normalmente, a esta altura do campeonato, gosto sempre de citar um pedacinho da Marguerite Duras que diz assim: “nada se passa na televisão. ninguém fala na televisão, falar como falar, quer dizer: a partir de qualquer coisa, de seja o que for, um cão atropelado, por ex., repor em marcha o imaginário do ser humano, a sua leitura criadora do universo, esse estranho gênio, tão espalhado pelo mundo, e isto a partir de um cão que foi atropelado. O ser humano precisa de não estar sempre no quotidiano, precisa de sair do quoti-diano e entrar noutros níveis, noutra sensação do mundo. Precisa de fazer coisas não produtivas, sair da lógica da produção, ter objetivos diferentes desses, precisa de voltar a saber que não há só um caminho entorpecedor e mecânico, que a vida é mais sutil do que isso, mais rica de redes e nós de sentidos e sensações, de linhas que se cruzam e que baralham e iluminam. é preciso reconhecer essas coisas, assiná-las, sublinhá-las, não só através do discurso mas também com o corpo, em ações, associando sentidos e elementos, virando de vez em quando as coisas ao contrário, desorganizando e reorganizando, é preciso olear o espírito, olear o ser, é preciso também pensar com o corpo, deixar o corpo falar, pobre corpo. é preciso sair de dentro do porta-moedas e entrar na associação, no delírio, na sujidade (é muito importante não termos medo da sujidade), na acoplagem, acoplagem de elementos ao nosso corpo, acoplagem de sentidos ao nosso corpo, ou acoplagem de objetos e sentidos entre si, é preciso entrar na transformação, é preciso não esquecer que há uma coisa que se chama êxtase, é preciso entrar no êxtase, na contemplação, na calma, nos sentidos do corpo, no corpo, na poesia, em visões, no espanto, no assombro, no gozo, no inconsciente, na perda, no esvaziamento, no desprendimento, na queda, é preciso tirar os sapatos, é preciso deitarmo-nos no chão, é preciso entrarmos na imaginação, nas histórias, no pensamento, nas palavras, no humor, na relação com os outros. Nós precisamos muito disto, precisamos muito disto tudo, e estamos a ter muito pouco disto e é por isso que, como disse no início, o espírito está em erosão, a cultura está em erosão e nós às vezes estamos muito tristes ou temos a sensação de que a vida desapareceu de cá de dentro .


Vera Mantero nasceu em Lisboa em 1966. Estudou dança clássica até aos 18 anos. Foi bailarina do Ballet Gulbenkian (1984/1989). Em Nova Iorque e Paris estudou técnicas de dança contemporânea, voz e teatro, fazendo então um corte com a sua formação clássica. Como bailarina trabalhou em França com Catherine Diverrès. Começou a coreografar os seus próprios trabalhos em 1987, e desde 1991 tem mostrado as suas peças em teatros e festivais na Europa, Brasil, EUA, Canadá e Singapura. No ano de 2002 foi-lhe atribuído o Prémio Almada (IPAE/Ministério da Cultura Português) pela sua carreira como criadora e intérprete.

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