Felicidade Programada
Happynomics:
a felicidade utópica
Pierre-Gilles Guéguen
Em
14 de outubro de 2007, o jornal britânico The Independent – com tendência
liberal-democrata, portanto à esquerda do Partido Trabalhista, teve como
manchete: “Uma vitória do pensamento positivo”, referindo-se ao relatório de
pré-orçamento do ministro das Finanças, Gordon Brown. Diante do desastre do
sistema psiquiátrico inglês, o ministério tomou as rédeas: liberou £30.000
imediatamente, seguidos de £170.000 que, a partir de 2010 seriam dedicados ao
retorno das “terapias pela palavra”.
Uma
lei que altera o plano de saúde mental é votada no parlamento. Ela ratifica o
fracasso das terapias medicamentosas e inicia uma mudança nas prioridades: “Os
médicos generalistas não tem tempo para falar com os seus pacientes; se eles se
queixam de estresse ou depressão, a lista de espera para consulta é de 18
meses. Agora sabemos que o tratamento pela palavra é mais eficaz para muitas
dessas doenças”, disse o The Independent, que realiza uma campanha de pressão
política nesse sentido há cinco anos. “A depressão e a ansiedade geram custos
enormes, tanto para as pessoas diretamente envolvidas, como para o país. Isto é
ainda mais caro do que o desemprego”, garante Layard, professor da renomada
Escola de Economia de Londres. Ele é a inspiração por trás do projeto, e autor
de um livro com título delirante: Felicidade: Lições de uma nova ciência. Ao
sabermos que o diretor de uma escola pública elitista - o Colégio Wellington –
incluiu no programa de seus alunos cursos de felicidade ministrados pelos
professores de religião e supervisionados pelo professor da Universidade de
Cambridge, Nick Baylis, fundador de um “Instituto da Felicidade”, não deve
surpreender a ideia de que quase todo o crédito do plano Layard será
direcionado à formação de psicólogos em TCC – os quais devem designar os termos
de “terapias pela palavra” e “pensamento positivo”.
Algumas
vozes, no entanto, parecem entrar em dissonância com essa loucura generalizada,
como a do Professor Rufus May, da Universidade de Bradford, que fez valer o
argumento econômico: “O pensamento do governo sobre a saúde mental não é a
longo prazo. Tudo é a curto prazo: ninguém quer saber nada além da maneira mais
econômica de resolver o problema. Precisamos pensar em um sistema mais global”.
Entretanto, no suposto quadro para “melhorar a perspectiva do público em
relação às psicoterapias”, dois centros-piloto foram implementados e um vasto
programa nacional deve dar continuidade ao projeto: “os terapeutas não terão
que ser graduados em psicologia e, por isso, o treinamento pode ser feito em
algumas semanas por cognitivistas que apliquem protocolos sob a supervisão de
um psicólogo diplomado”. Nossa colega britânica Julia Evans se referiu
corretamente a estes centros como “fábricas do bem-estar”.
Se
é verdade que recentemente a política global de saúde tem sido amplamente
modificada sob a pressão de conservadores liberais – no sentido tradicional e
europeu de liberalismo –, eu não pude, contudo, me assegurar que esses projetos
duvidosos tenham sido abandonados. É verdade que o governo de David Cameron é,
em boa parte, composto de conservadores autoritários, de acordo com uma política
da saúde intervencionista, definida ainda sob os governos trabalhistas de Tony
Blair e Gordon Brown, que foi chamada de New Labour.
Em
12 de março de 2011, surgiu uma matéria um tanto irônica do colunista britânico
Roger Cohen, do The New York Times, sob o título “Os happynomics da vida”, que
gerou inúmeros comentários. A matéria anuncia que, a partir de abril de 2011,
cada cidadão britânico deveria estar preparado para responder às seguintes
perguntas em uma escala de 0 a 10: Você se sentiu feliz no dia de ontem? Você
se sentiu ansioso no dia de ontem? Você se sente satisfeito com a sua vida
hoje? Até que ponto você acha que o que você faz da sua vida vale a pena?
O
governo de David Cameron quer instituir o primeiro índice econômico de
felicidade dos sujeitos de Sua Majestade, como indicado pelo repórter: “Isto é
para dar o valor das coisas que não têm rótulos,” ao invés de código de barras.
Isso faz parte do projeto Big Society de Cameron.
Poderíamos
identificar aí um gosto bastante britânico pela excentricidade, à la Lytton
Strachey, nesses projetos renovados de Bentham, não coincidisse isso com uma
tendência profunda entre especialistas em economia em todo o mundo. Layard é
professor na Escola de Economia de Londres e trabalha numa linha muito próxima dos
economistas americanos. Seu relatório sobre a depressão na Grã-Bretanha, que é
a origem do projeto, assim como o trabalho de seus colegas, é baseado em
agregados tão sofisticados como vazios de dados cognitivo-comportamentais.
O
mais conhecido entre esses economistas é o ganhador do Prêmio Nobel de Economia
de 2002, Daniel Kahneman, da Universidade Princeton nos EUA, mas outros
economistas mundialmente conhecidos como Joseph Stiglitz também se juntaram a
essa linha de trabalho, alguns para minimizar os custos das intervenções do
Estado na política de saúde (do lado dos conservadores), e outros para
encontrar uma maneira de se opor ao poder do dinheiro nas mudanças dos
indicadores do PIB e fazer valer o argumento de que a qualidade de vida não
pode se reduzir inteiramente à posse de riquezas.
Se
os franceses se consideram imunes, lembrem-se apenas que um relatório de mais
de 400 páginas, encomendado por, e com prefácio de Nicolas Sarkozy, foi
publicado pela Editora Odile Jacob em novembro de 2009, sob a direção dos
Prêmio Nobel de economia Joseph Stiglitz e Amartya Sem, e do professor e
especialista francês bastante conhecido, Jean-Paul Fitoussi. Trata-se, como
eles dizem, de garantir a mensuração e boa gestão do que chamam de “capital
humano”.
Como
indicado na contracapa: “Para enfrentar o futuro, devemos, em primeiro lugar, decifrar
melhor o mundo em torno de nós e compreender melhor como ele muda. Não há outro
meio senão o de melhorar a aritmética das nações”.
Portanto,
para além dessa ou daquela nação, é o conjunto dos países da economia mundial
que estão envolvidos nesta abordagem econômica.
Além
das crises econômicas - ocorridas repetidamente desde 2008, e bem antes por
certo – outros fatores demonstram a inutilidade de tais empresas. A “aritmética
das nações” não obedece à lógica do inconsciente nem ao do mal-estar na
civilização. Ela está baseada na suposição de que o gozo poderia se escrever
sem resto, ou seja, poderia ser totalmente inscrita dentro de um sistema de
ficções que não tocam o real, do tipo benthamiano. Ora, trata-se, para o ser
humano, de uma relação entre o corpo e a letra, relação que os happynomics
ignoram, mas da qual Lacan tratou especialmente no final do seu texto
“Lituraterra”. Remito-os aqui a uma apaixonante discussão entre Éric Laurent e
Jacques-Alain Miller, onde o problema é formulado a partir da frase conclusiva
de Lacan: “Uma ascese da escrita não me parece poder ser atingida senão
alcançando um ‘está escrito’ onde se inscreveria a relação sexual”.
A
conclusão desta breve apresentação poderia, então, apoiar-se neste comentário
que tomo emprestado de E. Laurent: “O discurso analítico só passará se
conseguir fazer escutar sua prática da não-relação, o que explica a abundância
de termos em Lituraterra que designam as não-relações; que vemos aparecer ora
como substantivo (Lacan fala de ruptura, de quebra), ora como verbo (ele fala
de dissolver, de quebrar), tudo isto aplicado ao significante.
Isso
indica que a letra está no corpo e que ela marca a ligação indissolúvel entre a
fala e o corpo pulsional, extraindo um resto que cava a não-relação, e que
Lacan põe em marcha sob o termo de objeto a.
O
impasse dos happynomics reside no fato de que eles acreditam que a fala não
comporta nenhuma não-relação e, portanto, nenhum resto. Esses economistas
imaginam que é possível fazer os consumidores felizes mesmo que eles não
saibam, enquanto Lacan, mais prudente, sabia que de, entrada, “o sujeito é
feliz”, porque ele goza de seu sinthoma, isto é, do vivente que há nele. Os
happynomics, pelo contrário, sonham com um mundo cuja enunciação, quer dizer, a
tomada do corpo naquilo que se diz, tenha desaparecido. Sobrariam apenas
enunciados sem sujeito –
teatro de sombras, algo próximo do Bunkaru japonês, do qual Roland Barthes
dizia, em O Império dos Signos, ter experimentado, ao assistir, o alívio de
quem abandona toda a responsabilidade para se submeter a um outro gozo.
A
psicanálise vai na direção oposta, e os jovens da Puerta del Sol, ou da Praça
Syntagma, nos fazem lembrar disso ao usarem como slogan: “Nós somos seres
humanos, e não os números do desemprego”.
Tradução: Priscylla Guedes
Revisão: Alma Rosas e Marcelo Veras
Fonte: Agente - Revista de Psicanálise
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