domingo, agosto 02, 2015

Psicanálise e Arte


Kosuth com Freud Imagem, psicanálise e arte contemporânea.

Tânia Rivera




O primeiro capítulo de Art Since 1900 trata, curiosamente, de psicanálise, mostrando que ela compartilha com a arte modernista um mesmo contexto histórico e que entre elas se produzem variadas interseções ao longo do século. Os autores identificam uma influência mais ou menos direta da psicanálise sobre a produção artística, embasada em interesses comuns, como o fascínio pelas origens, o primitivo e a loucura, ou ainda, “mais recentemente”, a subjetividade e a sexualidade.1 Além disso, notam que termos psicanalíticos entraram no vocabulário de base da arte e da crítica do século 20. Os entrelaçamentos dos dois campos parecem-nos, porém, ir além das conexões históricas que desenham um conjunto de temas comuns e de aplicações de conceitos psicanalíticos como instrumentos críticos. Mais amplamente, devemos conceber, em um contexto históricocultural expandido, que a psicanálise partilha com a arte do século 20 – e continua hoje compartilhando – questões fundamentais a respeito da própria natureza da imagem.

Imagem: manteremos esse termo vago, sem dúvida polissêmico (para não dizer francamente problemático), para designar o campo do visual que envolve o sujeito e se configura no campo mais amplo das representações – entendidas como produtos de determinadas relações entre sujeito e objeto. No terreno que a psicanálise compartilha com a arte, em diálogos múltiplos e cruzados (por vezes até cegos, ou surdos, desencontrados), tais relações são postas em crise, constituindo um campo notavelmente móvel e sujeito a subversões de um ou outro termo, sujeito ou objeto. O discurso que abre tal crise da imagem talvez seja aquele que a põe radicalmente na berlinda, na trilha indicada por Mallarmé: “O moderno desdenha imaginar”.2 Desde seu ato de fundação com A Interpretação dos Sonhos, a psicanálise trata da imagem, recuperando por via insuspeita um dos significados do eidolon grego, o de imagem do sonho, que coexistia com as conotações de aparição suscitada por um deus e de fantasma de um defunto.3 Por mais que Jacques Lacan tenha legitimamente buscado varrer do campo da psicanálise uma prepotência da imagem que obscurecia, nos autores pós-freudianos, a importância fundamental da linguagem na constituição do sujeito, a imagem retorna repetidamente e não cessa, até hoje, de assombrar a psicanálise. O imaginário em Lacan é o registro do engodo, da ilusão que devemos desdenhar (como para Mallarmé), pois encobre o sujeito do inconsciente. No entanto, a imagem é, desde Freud, como veremos neste ensaio, simultaneamente encobrimento e vislumbre do desejo que move o sujeito. Com a invenção freudiana do inconsciente, a noção de imagem se reconfigura segundo algumas linhas de força que nos parecem ressoar na produção artística do século 20 e preparar uma nova abordagem do campo disperso em que psicanálise e arte contemporânea se relacionam.

Empregaremos, portanto, o termo imagem porque vemos nele, justamente pelas dificuldades que levanta, no que carrega de problemático e impreciso – por vezes sendo aproximado da ideia de figuração, no discurso corrente sendo oposto ao campo da escultura etc. –, uma importante potência crítica. Talvez com ele seja possível pôr em crise, mais uma vez e repetidamente, certas ideias dominantes, como a atual versão de iconoclasmo apontada por Arlindo Machado,4 para recolocar, na contracorrente e em companhia da psicanálise e de alguns trabalhos de Joseph Kosuth sobre a obra de Freud, a velha questão da imagem. Sonho, memória e palavra Já em 1899, no precoce texto “Lembranças Encobridoras”, Freud pôs vigorosamente em questão o estatuto da recordação e, com ela, o da imagem. Ele mostra que nossas lembranças mais vívidas podem não ser mais do que fantasias, apesar de seu caráter ultranítido. Tais imagens fixam uma recordação que não ocorreu na realidade, ou privilegiam um evento totalmente banal. Em seu âmago, porém, há uma terrível verdade que elas escondem, encobrem: um acontecimento traumático. Assim é para o nascimento da irmãzinha de Freud, acontecimento de que ele não se recorda em absoluto, guardando em contrapartida a nítida recordação de um incidente banal ocorrido durante a viagem de trem que fez com a família nessa ocasião5. De maneira deslocada, disfarçada, na lembrança encobridora encontrasse condensado o essencial do conflito que constitui o sujeito. A lembrança encobridora é uma espécie de fotografia deslocada do infantil. Acentuando a distância entre vivência e representação, Freud faz da reprodução mnêmica uma construção que encobre a verdade, mas de alguma maneira a deixa entrever, podendo, portanto, ser perscrutada em uma tentativa de reconstruí-la. A imagem é obstáculo, véu sobre o trauma, e podemos chamá-la, nessa vertente, de imagem-muro. Mas por entre sua trama, em suas lacunas, encontrasse, in-visível, um acontecimento terrível – em sua vertente, digamos, de imagem-furo. As lembranças são o material privilegiado do inconsciente – chamado por Freud de Outra Cena –; elas se exprimem “em imagens visuais” (in visuelle Bilder) e são ávidas por revivescência, levando à alucinação que é o sonho: pensamento tornado imagem.6 O sonho é também uma cena – a cena por excelência, via real do inconsciente –, que Freud considera substituir uma “cena infantil”, modificando-a. A tal imagem originária, alucinação que constitui o sonho em si, porém, não se pode ter acesso. O sonho que se interpreta é o texto do sonho, aquele que Freud recomenda que seja escrito assim que acordamos e dele nos lembramos, ainda que seja de madrugada – é melhor ter um caderninho na mesa-de-cabeceira, como faz ele em sua “auto-análise”. Ou é o texto-discurso do sonho contado e recontado em análise, não importam tanto as inúmeras alterações que ele possa sofrer, o fundamental é que elas levem aos pensamentos oníricos – graças às associações que refazem, no sentido inverso, o trabalho figurativo do sonho, nesta espécie de trabalho de linguagem chamado associação livre.


Isso que a obra freudiana opera como um desdobramento da imagem, esse despregamento de si mesma que lhe confere outra espessura, é herdeiro de uma verdadeira revolução ocorrida nas relações entre sujeito e imagem, várias décadas mais cedo: a invenção da fotografia.7 Ao cumprir a pauta realista com precisão quase absoluta, a fotografia acaba por abrir uma crise sem precedentes na história da mímesis. Entre a representação e seu referente não há mais a distância segura que a pintura tentava ultrapassar. De um só golpe, é a própria realidade que é posta em questão: seria ela apenas imagem? O real se distancia até tornar-se inatingível, enquanto a imagem assume a dupla e paradoxal função de mostrá-lo e escondê-lo, ao mesmo tempo. Não é abusiva a concepção de Walter Benjamin de um “inconsciente ótico”, marcado pelo surgimento da fotografia e comparável ao inconsciente “pulsional” freudiano8. A fotografia inaugura uma analítica do visual que a cronofotografia, por exemplo, mostra com Muybridge: haveria ou não um momento na corrida de cavalos em que nenhuma das patas do animal se encontraria apoiada no chão? A psicanálise opera no sujeito aquilo que a fotografia realiza no âmbito do objeto: torna-o problemático, opaco, sujeito a análise. 

O inconsciente é “pulsional”, como o caracteriza Benjamin, apenas no sentido em que as pulsões, que Freud localiza na fronteira com a biologia, aí se fazem representar. O material do psiquismo são as representações, acompanhadas de forma mais ou menos errante por afetos. Para tratar do sujeito desencontrado, descentrado pelo inconsciente, é curioso que Freud lance mão por sua vez, repetidamente, do modelo de aparelhos óticos, que lhe permitem conceber, a partir da premissa de uma espessura e opacidade fundamentais à construção da realidade, uma estratificação em que refratações diversas na representação correspondem aos diferentes sistemas psíquicos: consciente, pré- consciente e inconsciente.

(...) Proponho simplesmente seguir a sugestão de visualizarmos o instrumento que executa nossas funções anímicas como semelhante a um microscópio composto, um aparelho fotográfico ou algo desse tipo. Com base nisso, a localização psíquica corresponderá a um ponto no interior do aparelho em que se produz um dos estágios preliminares da imagem.9

Não se trata apenas de fazer da localização psíquica um lugar virtual que se contraponha às porções do cérebro – com as quais, na época de Freud como hoje, alguns cientistas teimam em reduzir a questão do sujeito. O que Freud persistirá em chamar de “aparelho” psíquico produz imagem, no sonho prioritariamente, e também na lembrança encobridora, borrando as fronteiras entre sonho e recordação. Tal aparelho também produz piadas, lapsos e sintomas, fazendo da linguagem, sintoma. A imagem também é sintoma: ela cristaliza um conflito entre o que se pode e o que não se pode mostrar, entre o sexual enigmático e o eu, entre a imagem-muro e a imagem-furo. Longe de ser um material inerte que constituiria o inconsciente, a imagem é incerta, cambiante e disfarçada, distorcida pela censura. Os processos pelos quais ela se forma são figuras de linguagem: condensação e deslocamento (que Lacan faz equivaler à metáfora e a metonímia, respectivamente), pois a imagem está de saída entrelaçada à palavra. O sonho é rébus, enigma em imagens que devem ser (re)transformadas em palavras, ou melhor: palavras que desenham imagens a serem retraduzidas. O sonho é “linguagem (ou língua, Sprache) pictórica”, nos termos de Freud.10 As palavras são plásticas, podem-se com elas fazer imagens – aliás, pode-se com elas fazer todo tipo de coisas, como diz Freud em seu livro sobre as piadas.11 Os pensamentos que compõem o sonho são abstratos, são palavras, mas devem ser representados visualmente.

Não há dificuldade em explicar o constrangimento imposto à forma pela qual os pensamentos oníricos se expressam. O conteúdo dos sonhos consiste, em sua maior parte, em situações visuais [anschaulichen Situationen], e os pensamentos oníricos, por conseguinte, devem ser submetidos, em primeiro lugar, a um tratamento que os torne adequados a esse tipo de representação [apresentação, Darstellung]. 12

É nesse sentido que Freud afirma que “as palavras são frequentemente tratadas, nos sonhos, como se fossem coisas”13 – como coisas visíveis.

O Ready-made e o sonho

Em 1989, Joseph Kosuth instalou seu Zero & Not na Bergasse 19, casa e consultório de Freud durante décadas, até sua fuga dos nazistas em 1938. O artista cobriu as paredes com uma cuidadosa reprodução de trechos da obra do psicanalista Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901) e, em seguida, cobriu-os com fita negra, barrando-os de modo a impedir quase totalmente sua leitura – de maneira semelhante ao que Freud caracteriza como o trabalho da censura sobre o material inconsciente. Zero & Not foi o primeiro passo para transformar em um espaço de arte contemporânea o imóvel esvaziado dos principais pertences de Freud, que seguiram com ele para Londres e hoje compõem o Museu Freud nessa cidade. Kosuth convenceu artistas como John Baldessari, Jenny Holzer e Ilya Kabakov, entre outros, a doarem obras suas para o museu, formando a base da coleção da Fundação para as Artes, Museu Sigmund Freud em Viena. Em 1997, a exibição da coleção é reaberta com novos trabalhos de artistas como Sherrie Levine, Marc Goethals e Jessica Diamond. Kosuth apresenta aí um novo trabalho, intitulado O.&A./F!D! (to I.K. and J. F.), que se encontra em 2006 em mostra no Austrian Cultural Forum New York. Nesta última obra, Kosuth se apropria de um trecho de Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente14 reproduzido sobre uma parede. O texto de Freud trata dos sonhos e, mais especificamente, da transformação do conceito em imagem, dos pensamentos em “quadro onírico”:

O trabalho do sonho – ao qual retorno após essa digressão – submete o material dos pensamentos, apresentados no modo optativo, à mais estranha das revisões. Primeiro, passa do optativo ao presente do indicativo; substitui o “Oh! Se ao menos...” pelo “É”. Confere-se então ao “É” uma representação alucinatória; aquilo que chamei de ‘regressão’ no trabalho do sonho – o trajeto que leva dos pensamentos às imagens perceptivas [Wahrnehmungsbildern], ou, para usar a terminologia da ainda desconhecida topografia do aparato mental (não entendido anatomicamente), da região das estruturas dos pensamentos [Denkbildungen] às percepções sensoriais. Neste caminho, inverso ao curso tomado pelo desenvolvimento das direções das complicações mentais, os pensamentos oníricos ganham pictorialidade [Anschaulichkeit]; eventualmente, chega-se a uma situação plástica que é o núcleo do manifesto “quadro onírico” [Traumbildes]. 15

Parte do texto citado, que prossegue ainda em algumas frases, é coberto por uma grande fotografia emoldurada, sua leitura tornando-se fragmentária (lê-se integralmente o trecho que vai até “não entendido anatomicamente”). A imagem (o “pictórico”) é aí decomposta em sua relação com o desejo. O sonho transforma o desejo (“would it were”, na versão em inglês empregada por Kosuth) em imagem (“it is”). Essa obra sublinha e revela o sentido em que o sonho, na fórmula de Freud, é uma “realização de desejo”:16 ele realiza, torna cena, quadro, isso que desliza incessantemente na linguagem, nas cadeias do significante, o desejo. O trabalho de Kosuth faz do próprio texto de Freud, por sua vez, um it is, mostrando-o como uma imagem que escapa em parte à significação, já que uma fotografia – justamente! – vela parte do texto (como um “quadro onírico” velaria o texto do sonho, ao mesmo tempo em que o faz ver), mostrando uma porta de entrada (de um consultório? Do Museu Freud? Do inconsciente? Seja como for, ela está fechada). Por sua vez, essa imagem é recortada por um breve texto de Kosuth, uma espécie de slogan que ocupa quase um quarto de sua superfície, cobrindo todo o canto inferior direito: “Uma fronteira aqui se encontra entre uma “coisa” independente e sua seleção e substituição”. 

A referência a uma coisa e sua seleção evoca o procedimento de Marcel Duchamp e nos faz perceber que Kosuth faz uma espécie de ready-made com o texto freudiano. “A inicialmente brilhante mudança de paradigma de Duchamp com o ready-made estava, compreensivelmente, situada no mundo de objetos: ela parecia insistir em uma maior flexibilidade formal, mas ainda assim formal”, nota Kosuth. O pai da arte conceitual realiza então uma torção na noção de ready-made que dá o tom de toda sua obra, na intenção de levar o “conceito de ready-made ao seu nível estrutural mais profundo no que diz respeito ao processo de significação na arte”.17 Ele chegará a rebatizá-lo made-ready.
O “processo de significação na arte” aí concebido por Kosuth, em companhia de Freud, parece portanto jogar com imagem e linguagem, estabelecendo relações e descontinuidades entre eles, marcando zonas de invisibilidade e, por assim dizer, ‘dessignificação’. As “coisas” (os “it is” que formam o “quadro onírico”), no sonho, são selecionadas e substituídas à exaustão, levadas a remeter sempre a outras “coisas”, e assim se coloca em jogo, repetidamente, a “fronteira” entre “uma coisa” e “sua seleção ou substituição”. Uma “coisa” qualquer, inócua em si mesma, é tornada opaca por sua “seleção” pelo sonho, abrindo infinitas possibilidades de substituição associativa. O próprio sonho, tal como Freud o concebe e propõe lê-lo, implicando uma espécie de subversão da representação, talvez se aparente a um ready-made: selecionadas e substituídas de maneira múltipla, suas imagens são retomadas nos fios da linguagem do desejo, para se descolar de referentes concretos em prol de uma opacidade e uma incerteza interpretativa prenhe de sentidos.

O uso da “cosmografia” (ressalte-se aí a grafia) freudiana interessa a Kosuth por prover “uma estrutura de significação mais ampla que pode situar proposições artísticas específicas” e consistir em um “contexto teórico que é não assertivo (uma presença teórica negada) mais do que uma falta “a ser” interpretada”.18 Ele parece aí referir-se especialmente a Zero & Not, que escreve o texto freudiano nas paredes para cancelá-lo ou negá-lo, ao barrá-lo, construindo uma relação complexa entre o trabalho artístico e a teoria. Tal relação duplica e reflete a questão da própria natureza da significação, entre palavra e imagem. A teoria, tornada imagem, torna-se opaca e problemática, tanto quanto a arte: ela não interpreta, mas recoloca, com a arte, a questão da significação e de seu sujeito.



É em tal contexto de reflexão sobre o processo de significação na arte que o artista “usa” Freud por nove anos, a partir de 1981. Kosuth se apropria e reflete, em seu trabalho, sobre a obra de outros autores, como Kafka, Musil, Joyce e Italo Svevo – além de Walter Benjamin e Wittgenstein, sua influência seminal e mais marcante –, interessado no “amplo campo de pensamento que afetou as ‘margens’ intelectuais do século 20”.19 Kosuth põe então em ato um “serviço filosófico”20 ou “uma atividade pósfilosófica”21 que visa reciclar a filosofia, com a arte, visto que “de alguma forma, a arte herdou muito do programa da filosofia, sem os riscos de alguns dos aspectos especulativos que trouxeram problemas para esta”.22 Não é surpreendente que ele avance nessa direção justo com Freud, apesar do anti-subjetivismo professado pelo artista. A psicanálise rompe com a filosofia ao se embasar em uma práxis clínica – que herda da tragédia grega sua primeira denominação como “método catártico”23 – e por ela se livra de um certo risco especulativo, sem contudo deixar de retornar a alguma “especulação” na elaboração de sua teoria, que tem como núcleo, diga-se de passagem, ainda outro empréstimo à tragédia grega, o complexo de Édipo.24 A psicanálise apela para o sujeito, visa nele operar efeitos, assim como Kosuth pretende engajar seu olhador/leitor no processo de significação posto em marcha por suas obras. De fato, o artista parece extasiado ao contar que seu Zero & Not, originalmente realizado no consultório de um psicanalista na cidade belga de Ghent, teria segundo este profissional se tornado “parte da terapia”. 25

Repetição, ferida e imagem

 Dizíamos, com Freud, que recordações de vivências marcantes, que costumam ser visuais, exercem um papel central para qualquer produção de imagem. Elas são uma parte importante dos pensamentos oníricos, sobre a qual o psicanalista afirma:
Sempre que surge a possibilidade, essa parte dos pensamentos oníricos exerce uma influência decisiva sobre a forma assumida pelo conteúdo do sonho; constitui, por assim dizer, um núcleo de cristalização que atrai para si o material dos pensamentos oníricos e, desse modo, afeta sua distribuição. A situação do sonho não é, com frequência, outra coisa senão uma repetição modificada, e complicada por interpolações, de uma dessas vivências marcantes; por outro lado, as reproduções fiéis e diretas de cenas reais raramente aparecem nos sonhos. 26

A “seleção” e a “substituição” da “coisa” que vimos Kosuth sublinhar não é portanto aleatória, mas se pauta por um insuspeitado – e in-visível – ponto de atração. É surpreendente que já apareça aqui como verdadeiro motivo da criação onírica a repetição, que só 20 anos mais tarde terá, na obra de Freud, reconhecido seu lugar central no funcionamento anímico, com a introdução da pulsão de morte. A “cristalização” é uma questão de “forma” e implica – levando-se em conta a enorme complexidade lógica de todo esse material a que Freud chama “pensamentos oníricos” – um trabalho do sonho que fragmenta, desloca e condensa, seleciona o material adequado para se construírem “situações” e enfim cria, nas surpreendentes palavras de Freud, “novas superfícies”.27

As vivências infantis deixam literalmente marcas, mas não são em si cenas reprodutíveis – a recordação já foi conformada pela cena da fantasia e com ela já se tornou cobertura, imagem-muro ou véu sobre essa cena perdida que se tratará, em análise, de construir (e não recuperar ou descobrir, pois ela só se pode constituir ficcional e retrospectivamente28). A vivência em si não é propriamente imagem, pelo contrário: é seu oposto (imagem-furo, o furo na imagem), e no entanto incita à sua formação (criando “novas superfícies”). O originário é cena Outra, obscena, por assim dizer, porque põe em xeque a própria possibilidade de encenação, de representação. Sua potência é anticênica, informal, pulsante – figural, se quisermos empregar o termo de JeanFrançois Lyotard.29 Mas ele só toma lugar de originário como tal, nuclear para a constituição do sujeito, ao se organizar como cena – uma cena que, paradoxalmente, é cena ausente (e não apenas escondida), ferida na imagem e no corpo. A palavra grega traûma designa ferida. Cena ausente que convoca para o campo do visual os pensamentos, criando, com o sonho, imagens capazes de tornar realidade o desejo ou, ainda, de pôr em xeque o próprio desejo e trair sua escondida e problemática origem, no pesadelo. Trata-se, portanto, de produção de imagem, prioritariamente, no aparelho anímico, ainda que de linguagem se entreteça seu trabalho. A natureza da imagem é compósita, como sustenta de forma brilhante Jacques Rancière pensando no cinema, mas não apenas nele: as imagens “são em primeiro lugar operações, relações entre o dizível e o visível”.30 O que a psicanálise vem marcar fortemente, porém, é que a imagem, ao articular o dizível e o visível, delineia também um campo de invisibilidade (e indizibilidade) que lhe é também essencial, e não deixa de através dela se apresentar, de forma mais ou menos escondida. Tal campo deixa-se entrever no sonho-modelo apresentado por Freud para introduzir seu método interpretativo, conhecido como “sonho da injeção de Irma”. Trata-se de um sonho do próprio Freud em que ele vê, em um grande salão onde estaria recebendo amigos, uma antiga analisanda a quem dá o nome de Irma. Ela não lhe parece nada bem, e ele a leva até a janela para examinar-lhe a garganta. Irma resiste, mas logo abre “a boca como devia”, e Freud vê, de um lado, uma grande placa branca e, do outro, “extensas crostas cinza-esbranquiçadas sobre algumas notáveis estruturas recurvadas, que tinham evidentemente por modelo os ossos turbinados do nariz”.31 O psicanalista chama então alguns colegas médicos que também examinam a paciente. Um deles profere o veredicto absurdo de que se trataria de uma infecção sem importância, pois logo viria uma disenteria e a toxina seria eliminada. Prontamente se percebe então que a origem da infecção estaria em uma injeção aplicada por outro médico. Tratava-se de uma injeção, diz Freud, de “um preparado de propil, propilos... ácido propiônico... trimetilamina (e eu via diante de mim a fórmula desse preparado, impressa em grossos caracteres)...”.32 

As abundantes associações do sonhador levam à sua interpretação como desejo de ser inocentado de possíveis críticas em relação à sua responsabilidade médica no tratamento psicanalítico de Irma. Esta não se acharia totalmente curada de sua histeria, na opinião de seu analista naquele momento, por não ter “aberto a boca como deveria”, ou seja, por não ter aceito falar tanto quanto seria necessário para ir adiante em seu tratamento. Mas sobre a boca aberta da figura de Irma, que Freud associa a outras mulheres, entre as quais sua esposa, ele se recusa a associar mais longamente. A boca aberta onde se vê algo, manchas, e não se pode ver nada, boca-abismo que é antiimagem, mancha sobre a imagem, dá então lugar ao que Freud curiosamente chama “umbigo do sonho”, ponto em que se torna insondável, resistente à interpretação.

Mesmo no sonho mais minuciosamente interpretado, é frequente haver um trecho que tem de ser deixado na obscuridade; é que, durante o trabalho de interpretação, apercebemo-nos de que há nesse ponto um emaranhado de pensamentos oníricos que não se deixa desenredar e que, além disso, nada acrescenta a nosso conhecimento do conteúdo do sonho. Esse é o umbigo do sonho, o ponto onde ele mergulha no desconhecido. Os pensamentos oníricos a que somos levados pela interpretação não podem, pela natureza das coisas, ter um fim definido; estão fadados a ramificar-se em todas as direções dentro da intricada rede de nosso mundo do pensamento. É de algum ponto em que essa trama é particularmente fechada que brota o desejo do sonho, tal como um cogumelo de seu micélio.33

Nesse sentido, Georges Didi-Hubermann propõe que se pense a imagem, com Freud, como rasgo, rasgo que é um trabalho, um processo que “abre” a representação.34 O autor O autor lembra que a mímesis é, já na Poética, de Aristóteles, múltipla, podendo seguir meios variados. No sonho abre-se a questão da semelhança, a mímesis dá-se por meios curiosos, que mais deformam do que constroem imitações. Pois o sonho mostra algo – mais do que isso, acrescentaríamos, ele faz algo: realiza um desejo, ou seja, torna-o imagem (e texto) –, mas não pode mostrar algo, deve esconder, disfarçar para tornar imagem o que não pode ser visto/dito como tal. Mesmo a condensação, que agrupa conteúdos ou substitui um conteúdo por outro, a partir de alguma semelhança entre eles, tende a deformá-los ao uni-los.

A mímesis e o real

Não é à toa que Freud ilustra sua concepção da condensação com os retratos compósitos de Francis Galton (1822-1911), pesquisador inglês de interesses múltiplos que fundou a teoria da eugenia aplicando as teorias de seu primo Chales Darwin ao estudo da hereditariedade, além de ser considerado o pai da psicometria, da psicologia diferencial e da técnica de uso de digitais para identificação. Galton trabalha, a partir de 1877, com superposição de fotografias de indivíduos de um determinado grupo, gerando retratos compósitos, imagens um tanto embaçadas nas quais se ressaltam os traços fisionômicos comuns. Assim ele chega, por exemplo, ao retrato do “tipo judeu”.35 Deixaremos de lado as funestas implicações de suas pesquisas para notar que sua técnica põe em relevo algo fundamental à fotografia (e à imagem segundo a psicanálise): unindo traços de pessoas diferentes, constrói-se uma imagem de ninguém, o retrato de um conceito, fosse ele imaginado como traço de personalidade ou de família. Mais uma vez, não é aleatório o uso da fotografia como ilustração do mecanismo. O inconsciente incide sobre a questão da imagem de maneira a retirar dela a possibilidade de correspondência direta a um referente, e com isso problematiza fortemente seu caráter mimético, o põe em crise e situa a psicanálise como uma verdadeira crítica da imagem.

Uma vez afastada a correspondência direta entre imagem e referente, a montagem toma então o primeiro plano, lembrando a contemporaneidade estrita da psicanálise com o principal rebento da fotografia, o cinema. Os procedimentos de representação que Freud identifica no sonho e refaz em sua interpretação abrem uma multiplicidade de relações, uma fuga de associações em que imagem e linguagem se enodam e contrapõem de maneira imprevisível, segundo recortes meramente contingentes. Em lugar de uma relação mais ou menos estável entre o que é representado e sua representação, a linguagem estabelece aí uma variedade de pontos (e contrapontos) de contato e de distância, fazendo da imagem um rébus, uma imagem-texto espessa, que revela ao mesmo tempo em que vela o que representa, e que portanto deve ser vista ou “lida” também de formas infinitas, interpretada sempre de forma limitada e em movimento, já que falta o código capaz de tornar possível uma tradução direta da imagem à palavra. Nos termos de Didi-Hubermann, a imagem está “em processo”.

Então, assemelhar não diz mais de um estado de fato, mas de um processo, uma figuração em ato que vem, pouco a pouco ou de repente, fazer tocarem-se dois elementos até então separados (ou separados segundo a ordem do discurso). 36

É necessário salientar, na pertinente defesa que Didi-Hubermann faz do lugar do “não-saber”, do desconhecido, no processo de produção de imagens, algo que esse autor deixa de lado: trata-se aí do Sexual enigmático, do Real, como propõe Lacan, que é insondável, resiste à simbolização e insiste em pôr em risco – em rasgo – a representação. Jean-François Lyotard, ao longo de seu clássico Discours, Figure, ressalta do “figural” a natureza pulsional, energética, dessa força capaz de transgredir e mesmo violentar a ordem do discurso.37 O Real é o que “não cessa de não se escrever”, no bordão incessantemente repetido por Lacan. O Real dá à representação seus limites e a obriga a uma repetição, tornando-a um processo infinito que coincide com sua própria interpretação. A imagem em Freud, é importante notar, pede interpretação, e o processo de sua formação é refeito apenas à rebours, retroativamente em relação à interpretação. Mas isso não é tudo. É desse ponto mesmo, desse umbigo pelo qual a imagem se comunica com a mãe (a metáfora é loquaz) e toca no Real, que se origina o élan para essa criação, o desejo a buscar na imagem sua realização, boca aberta de Irma a mostrar coisas terríveis que devem ser inscritas, rápido, graças à intervenção de um significante: nem que seja a fórmula da Trimetilamina. Como uma espécie de apelo último de Freud à química, à ciência bem formalizada, na borda do abismo onde o coloca o inconsciente.



“Há um trabalho do negativo na imagem”, nota Didi-Huberman em sua leitura de Freud, “uma eficácia “sombria” que, por assim dizer, cava o visível (o ordenamento dos aspectos representados) e mortifica o legível (o ordenamento dos dispositivos de significação)”.38 Tal trabalho do negativo será teorizado por Freud mais detidamente na parte final de sua obra, com o conceito de pulsão de morte. Se o umbigo do sonho já designa esse ponto de fuga que marca um esvaziamento da imagem e aponta in extremis para uma destruição de qualquer possibilidade de representação, é ele também que faz apelo à linguagem e incita a seu entrelaçamento com o visível para a produção de imagens – que vêm contornar esse ponto cego.

Não se trata propriamente de algo que, visível, não se possa mostrar – porque recalcado – mas, mais radicalmente, da existência de uma matéria bruta da imagem que é informe, excrescência terrível, abismo onde nada se vê, e o sujeito vacila, quase caindo. Não apenas informe, para aludir ao termo proposto por Georges Bataille para nomear uma indistinção entre figura e fundo, eu e outro, trata-se aí de algo obsceno no sentido que Hal Foster emprega, ligando-o à noção de abjeção elaborada por Julia Kristeva. Referindo-se a uma obra de Cindy Sherman (Untitled # 153), Foster afirma que “o objeto-olhar é apresentado como se não houvesse cena para representá-lo, não houvesse moldura de representação para contê- lo, não houvesse tela”.39

Esqueletos de imagens

Como vimos no sonho de Irma, nesse ponto irrepresentável que Lacan nomeia como Real vemos surgir um significante, letra quase “pura”, suporte material da linguagem que apoiará uma simbolização: representação deslocada, nas imagens, no(s) texto(s) do sonho ou, ainda, em suas interpretações, que não são mais do que (re)produções de textos e imagens. Kosuth, na instalação Zeno nas margens do mundo conhecido apresentada na XLV Bienal de Veneza, apropria-se de um trecho de texto literário, A consciência de Zeno, de Italo Svevo, recortando-o em frases apresentadas em três línguas. Não por acaso, o romance, de 1923, é o primeiro escrito literário a narrar um tratamento analítico, de forma um tanto irônica. Zeno encarna um dândi que apresenta sintomas em profusão, confirmando de forma simplista algumas ideias de Freud. Seu analista sugere, como parte do tratamento, que este escreva sua autobiografia, o que poderia dar mostras de um provável desconhecimento do autor a respeito de como se dá um tratamento analítico. Mas a própria construção do romance duplica a sua temática, a autobiografia em que consiste o romance, confirmando noções fundamentais da psicanálise de forma mais profunda que seu discurso aparentemente cético. Svevo indica que a literatura é mais “psicanalítica” do que o tratamento a que os médicos restringiriam a psicanálise – ao menos de acordo com a visão francamente caricatural que o romancista apresenta do que seja um tratamento analítico. “Grande homem é nosso Freud”, diz ele em uma de suas cartas, “porém mais para os romancistas do que para os doentes”.40 Para Kosuth, esse livro aborda vários conceitos que se tornaram depois básicos “para nosso discurso no resto do século”.41



O artista ressalta como chave dessa novela a repetição. De fato, o narrador afirma: “(...) O tempo para mim não é essa coisa insensata que nunca pára. Para mim, só para mim, ele retorna”.42 O tratamento analítico é uma autobiografia na medida em que obriga a um retorno e a uma construção (ficcional) do passado. Porém, ao contrário de Freud, o analista de Zeno assegura-lhe que sua “lembrança seria nítida e completa”.43 Zeno retorque de modo eloquente a respeito da questão da imagem e sua relação com a palavra, no trecho reproduzido por Kosuth em sua instalação:

Quando atingi o torpor que deveria facilitar a ilusão e que me parecia não ser mais que a associação de um grande esforço a uma grande inércia, acreditei que as imagens fossem verdadeiras reproduções dos dias longínquos. Teria podido suspeitar logo de que não eram assim, pois, mal desvaneciam, eu as recordava, só que sem nenhuma excitação ou comoção. Recordava-as como nos recordamos dos fatos que nos são contados por alguém que não os tenha presenciado. Se fossem verdadeiras reproduções, teria continuado a rir delas e a chorá-las, como no instante em que as tivera. E o doutor registrava. Dizia: “Conseguimos isto, conseguimos aquilo.” Na verdade, não havíamos obtido mais do que signos gráficos, esqueletos de imagens. Fui levado a crer ... 44

A última frase abre, no livro de Svevo, um novo parágrafo, e prossegue além das reticências introduzidas por Kosuth: “Fui levado a crer que se tratava de uma reevocação de minha infância...”. Vem então o relato de um sonho mostrando o sofrimento de Zeno criança, ao ir à escola enquanto seu irmão mais novo tinha permissão para ficar em casa. O protagonista desacredita de seu analista e interrompe sua análise, ao perceber a perturbadora natureza de linguagem que possuem essas imagens e decretá-las “inventadas”. Ele resiste a reconhecer nelas o que, por contraste, delicia Kosuth (e Freud): sua natureza de “signos gráficos, esqueletos de imagens” recusando uma visibilidade plena e segura e desenhando um ‘invisível’, perfilando um horizonte incerto. 

Em uma versão anterior dessa obra, Kosuth fizera um mesmo trecho do livro ser repetido e traduzido, em alemão e inglês. Já em Veneza, o texto contínuo citado acima aparece parte em italiano, parte em húngaro e inglês. Essa apropriação de Kosuth impede desse trecho uma tradução única, e apenas as pessoas que conhecem as três línguas poderiam, para o artista, “ver” a instalação inteira. Em uma fina análise do romance de Svevo, Kosuth nota que o ponto de vista de Zeno é outside, e é nessa posição que o “olhador/leitor” – como ele gosta chamá-lo – será também engajado no trabalho. O olhador está “fora” de parte do visível, diante de um visível que não é completamente legível. O mais importante, porém, é que Kosuth afirma fazer, desse texto híbrido e estranhado por recortes e transladações, tornado opaco e inacessível a uma leitura discursiva, um “horizonte”.45 Esse horizonte desenhado por palavras nas paredes dessa instalação é acompanhado ainda de reproduções de recortes de jornais, tornando-se polifônico, múltiplo.

“(...) Eu uso imagens linguisticamente. A linguagem está sempre lá, quer eu use ou não palavras”, nota Kosuth.46 Poderíamos afirmar que ele também faz o inverso: usa a linguagem visualmente, imageticamente, quer use ou não imagens. De fato, Kosuth diz querer nessa obra “fazer um trabalho que seja contemplativo”,47 o que teria até então evitado. Olhar tal horizonte coincide com estar envolvido no problemático processo de significação a que a obra convida.

Dizíamos acima que a psicanálise concebe a imagem como um certo híbrido entre imagens e palavras, em um regime um tanto caótico do qual é possível se inferir certa retórica, dada pelo deslocamento (metonímia) e pela condensação (metáfora), mas que interdita o estabelecimento de uma simbologia estável, uma iconografia. O referente perdeu sua presença tangível, com a concepção do inconsciente como locus do trauma, e o tecido da representação se esgarça e expande, tomando lugar ao mesmo tempo do que se trata de representar e do que se representa, em ato. Os meios de representação coincidem com o objeto de representação – a linguagem, na obra de Kosuth, é o próprio horizonte –, e põe-se ao avesso a afirmação de Aristóteles segundo a qual os homens “se comprazem no imitado” graças ao fato de nele reconhecerem o original. “(...) Se suceder que alguém não tenha visto o original, nenhum prazer [hédones, em grego] lhe advirá da imagem, como imitada, mas tão somente da execução, da cor ou qualquer outra causa da mesma espécie”.48

 A mímesis não é apenas semelhança, mas inclui uma dessemelhança, uma distância em relação ao “original” que, como lembra Jacques Rancière com a expressão “alteração da semelhança”, é a condição mesma da arte. Aliás, é no sentido de tal alteração, que pode tomar mil formas, “que a arte é feita de imagens, quer seja ou não figurativa”.49 Do original passamos, com Freud, ao originário que não se pode ver mas que constitui o fulcro do visível, sendo o original perdido que se tratará de (re)construir, com imagens, palavras, com palavras tornadas imagens. “Como a palavra sabe atravessar o tempo!”, exclama Zeno. “Ela própria é um acontecimento que se interliga aos acontecimentos!”50

Fort! Da!

Talvez estejamos frente a um novo regime da imagem, uma redistribuição de suas relações com o visível e com a linguagem. A opacidade, o movimento, a montagem tomam na produção da imagem a dianteira sobre o “reconhecimento” de que falava Aristóteles na citação acima. Uma vez retirado o “original” da imagem, seria ela capaz de produzir, nos termos de Aristóteles, algum prazer? Algum “prazer” poderá vir dos elementos inerentes à própria obra (da “execução”, da “cor” etc.), como atesta – e disso faz profissão de fé – parte da arte modernista. Ou pode-se pensar que, uma vez subvertida a mímesis pelo desaparecimento do referente, a própria noção de prazer deve por sua vez se transformar? É justo de uma tal transformação do prazer que trata todo o texto freudiano “Além do princípio de prazer”. O pesadelo, por exemplo, mostra uma primazia do desprazer contradizendo a satisfação que, supõe-se, acompanharia a realização de desejo. No domínio da arte, em especial, o prazer encontra-se francamente problematizado, como nota o próprio Freud. (...) Nos adultos, a atividade artística de jogo e imitação que, diferentemente do comportamento da criança, visa a pessoa do espectador, não poupa a este, por exemplo na tragédia, as mais dolorosas experiências, e, no entanto, pode ser por eles sentida como um prazer superior [hoher Genuss]. 51 Inscrevendo-se de maneira inconteste na tradição estética, Freud revê nesse momento o postulado, vigente desde o início de sua obra, de que o funcionamento do aparelho psíquico busca obter prazer e evitar o desprazer (segundo o chamado “princípio de prazer”). Ele propõe então a repetição do trauma como regime primordial da psique. A oposição prazer/desprazer é revista em função do gozo (como Lacan propõe chamá-lo) que mescla ambos em uma angústia cheia de volúpia, em um prazer “superior”, porque um tanto terrível. Prazer transformado em angústia, desprazer tornado volúpia: o gozo está ligado à repetição do que não se encena, não se escreve. Mas se joga, aderindo-se à compulsão à repetição, o que é capaz de levar a alguma encenação.

É justamente um jogo, uma brincadeira infantil que é evocada por Freud a este respeito. Seu neto de um ano e meio gostava muito de jogar para longe de si todo tipo de objeto. Um dia, esse comportamento se tornou claro como um “jogo completo”. O menino segurava por um barbante um carretel, e se pôs a arremessá-lo para dentro de sua caminha, onde ele desaparecia sob o cortinado. A criança emitia então o som “oooo”, reconhecido por seus familiares como o advérbio fort, longe. Ao puxar de volta o carretel para si, trazendo-o de volta à visão, o menino dizia “aaaa”, que os outros significavam como da, algo como “aí está!”. Para o psicanalista, trata-se aí de uma grande realização da criança, uma renúncia pulsional que representa uma grande conquista. Ela brincaria, com o carretel, de fazer sua mãe partir, repetindo portanto essa vivência dolorosa, e teria com o jogo, graças à substituição da mãe pelo objeto-carretel, inventado um modo de trazê-la simbolicamente de volta, renunciando assim à posse total desse seu objeto primeiro e fundamental.



Os slogans e neons de Kosuth não deixam de ser um modo de compulsivamente retomar esse momento inaugural de significação que é também aquele em que surge um sujeito – que a princípio não é mais do que a oposição entre os fonemas “a”/“o” –, mas ao tomar o barbante e, repetidamente, fazer algo desaparecer de sua vista, cria um mundo de opacidade que põe à prova, todo o tempo, a possibilidade de significá-lo. Como formula Lyotard em Discours, Figure, “há uma compulsão de opacidade que faz que isso de que se fala seja dado como perdido”.52 A partir daí o visual, ou o “inconsciente ótico”, como Rosalind Krauss prefere chamá-lo, com Benjamin, “reclama para si essa dimensão de opacidade, de repetição, de tempo”.53 Em 1985, Kosuth apresenta na Galeria Leo Castelli sua exposição Fort! Da!. Ele usa aí marcas de X, já empregadas na série Cathexis (1981), no chão da galeria e em uma fotografia de grandes dimensões onde se lê a seguinte inscrição: “Há um texto perdido e uma tradução, há uma ordem, uma lista, há um quadro [picture] e um lugar de onde lê-lo”. Os X marcados no chão do espaço expositivo e no chão que o reproduz, idêntico, na fotografia, fazem um jogo entre o que está fora e dentro da obra, pondo em questão o próprio lugar de seu olhador/leitor. O texto está irremediavelmente perdido (Fort!), o que se apresenta é sempre uma tradução, no Da! que anuncia seu aparecimento como imagem.



Lyotard põe em relevo o gesto de Kosuth (seus X, suas palavras) como aquele do homem que desenha alguns traços em um suporte, anteriormente à definição de seu produto como pintura ou escrita: “Ele apela, por meio do visível-legível, a uma ‘presença’ que é mais do que o calmo ato de ver e ler”.54 Tal presença é, contudo, marcada por uma opacidade, ou um jogo de esconde-esconde entre imagem e sujeito. Não se trata apenas, como notava Kosuth a respeito de Zero & Not, de apresentar a ausência, mas da “linguagem reduzida a palavras, fazendo da própria textura do ler uma ‘chegada’ na linguagem, uma chegada que constrói outras ordens, as quais cegam ao se fazer visíveis”.55

A imagem posta à prova de sua opacidade gera então, em um extremo, o apelo à materialidade da letra. Em outro extremo, ela é capaz de gerar uma busca pelo real além da imagem, realizando o desafio de tornar visível a zona de ‘dessignificação’, realçar suas cores, por assim dizer, de forma a tirar da opacidade alguns elementos. Para Hal Foster, em seu famoso ensaio “The Return of the Real”, algumas obras contemporâneas querem que “o real exista, em toda a glória (ou o horror) de seu desejo pulsátil (...)”.56 Para esse fim, elas não só atacam a imagem, mas tentam romper a tela, a cena que torna imagem essa opacidade, buscando refazer seu encontro traumático ou materializar o que vimos Freud chamar de “umbigo do sonho”.

Por mais que pareçam opostas, essas duas vertentes se situam em um mesmo terreno de jogo entre sujeito e objeto, submetidas a esse estranho funcionamento que Freud denomina “compulsão à repetição”, no regime da dita pulsão de morte. A linguagem, materializada, apresentada como imagem problemática, distante mil léguas de qualquer subjetivismo, não deixa de recolocar subterraneamente em jogo o sujeito em sua complexa articulação com a representação, e o faz talvez de forma mais potente do que ao tomá-lo diretamente como tema. Recoloca-se em jogo também, nesse contexto, o diálogo entre produção artística e psicanálise, de forma insuspeita e mais íntima do que normalmente se supõe. Como afirma Kosuth,

A ubíqua influência de Freud continua gerando um efeito em nossa leitura de numerosos códigos culturais. Nós sabemos onde ela se situa, não sabemos dizer onde ela não se situa. ‘Buscar significados’ em um contexto freudiano, fora do contexto, provê uma certa auto-reflexividade em um contexto de arte sobre esse próprio processo. 57
Notas
 1 Foster, H.; Krauss, R.; Bois, Y-A. e Buchloh, A. D. Psychoanalysis in Modernism and as Method. In Art Since 1900. Londres: Thames and Hudson, 2004: 1. A tradução dessa e das demais citações presentes neste ensaio foi feita pela autora.
2 Apud Rancière, J. Le Destin des Images. Paris: La Fabrique, 2003, contracapa.
3 Cf. Ddebray, R. Vie et Mort de L’Image. Paris: Gallimard, 1992: 28-29.
4 Cf. Machado, A. O Quarto Iconoclasmo e Outros Ensaios Hereges. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.
5 Cf. Freud, S. Lembranças Encobridoras (1899). In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (ESB). Rio de Janeiro: Imago, 1987, vol. III: 269-287.
6 Freud, S. A Interpretação de Sonhos (1900). In ESB, vol. V: 500. Modificado de acordo com o original (Die Traumdeutung. In: Gesammelte Werke, Londres: Imago, vol. II/III, 1942: 551).
7 Para exame mais detido dessa relação e sua ligação ao cinema, ver Rivera, T. Vertigens da Imagem. Sujeito, Cinema e Arte. In: Rivera, T. & Safatle, V. (orgs.) Sobre Arte e Psicanálise. São Paulo: Escuta, 2006: 137-162.
8 Benjamin, W. Pequena História da Fotografia (1931). In Obras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994: 94.
9 Freud, 1900, op. cit.: 491.
10 Bildliche Sprache. Die Traumdeutung. In: Gesammelte Werke, Londres: Imago, vol. II/III, 1942: 323.
11 Cf. Freud, S. Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente (1905). In: ESB, op. cit., vol. VIII.
12 Freud, S. Sobre os Sonhos. In: ESB, op. cit., vol. V: 590.
13 Freud, 1900, op. cit.: 286. 76 REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS EBA • UFRJ • 2006
14 E não um trecho de A Interpretação de Sonhos, como afirma equivocadamente o catálogo da exposição Freud and Contemporary Art. The Collection of The Sigmund Freud Museum Vienna. Nova York: Austrian Cultural Forum, 2006: 26.
15 Freud, 1905, op. cit.: 186-187. Revisto de acordo com a edição original Der Witz und Seine Beziehung zum Unbewussten. In: Gesammelte Werke, op. cit., vol. VI: 185.
 16 Freud, 1900, op. cit., passim.
17 Kosuth, J. Zeno at the Edge of the Known World, Bienal de Veneza XLV Exposição Internacional de Arte, Pavilhão da Hungria, 1993: 104.
18 Kosuth, J. Art After Philosophy and After. Collected Writings, 1966-1990. Cambridge/Londres: MIT Press, 1991: 233.19 Kosuth, 1993, op. cit.: 104.
19 Kosuth, 1993, op. cit.: 104.
20 Id., ibid.
21 Id., ibid.: 151.
22 Id., ibid.: 104.
23 Cf. Freud, S. Estudos sobre a Histeria (1895). In: ESB, op. cit., vol. II.
24 Cf. Freud, 1900, op. cit.: 256-259.
25 Kosuth, 1993, op. cit.: 159.
26 Freud, S. “Sobre os Sonhos”, op. cit.: 591, grifo nosso.
27 Idem. No original, Über den Traum. In: Gesammelte Werke, Londres: Imago, vol. II/III, 1942: 673
28 Cf. Construções em Análise (1937). In: ESB, vol. XXIII.
29 Lyotard, J.-F. Discours, Figure. S/l.: Klinksieck, 2002.
30 Rancière, op. cit.: 14.
31 Freud, 1900, op. cit.: 128.
32 Id., ibid.: 129.
33 Id., ibid.: 482.
34 Didi-Huberman, G. Devant l’Image. Paris: Les Éditions de Minuit, 1990. 
35 Cf. www.medienkunstnetz.de/works/composite-fotografie. Consultado em abril de 2006.
36 Didi-Huberman, op. cit.: 182.
37 Cf. Lyotard, op. cit.: 271 e passim.
38 Didi-Huberman, op. cit.: 174.
39 Foster, H. The Return of the Real. Cambridge/Londres, The MIT Press, 1996, p. 149.
40 Apud Bosi, A. “Posfácio. Uma Cultura Doente?”, in: Svevo, I. A consciência de Zeno. São Paulo: Nova Fronteira, 2001.: 409.
41 Kosuth, 1993, op. cit.: 153.
42 Svevo, op. cit.: 17.
43 Id., ibid.: 373.                                                  
44 Id., ibid.: 373-374.
45 Kosuth, 1993, op. cit.: 152.
46 Id., ibid.: 156.
47 Id., ibid.
48 Aristóteles. Poética. S/l.: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, s/d (tradução de Eudoro de Sousa): 107 (§ 1448b: 8; 16-19). Agradeço a Ana Vicentini a consulta do original.
49 Rancière, op. cit.: 15.
50 Svevo, op. cit.: 318.
51 Freud, S. Além do Princípio do Prazer. In: ESB, vol. XVIII: 29. No original alemão, op. cit.: 15.
52 Lyotard, op. cit.: 104.
53 Krauss, R. The Optical Unconscious. Cambridge/Londres: MIT Press, 1998: 24.
54 Lyotard, J.-F. Foreword: After the Words. In: Kosuth, 1991, op. cit.: xviii.
55 Kosuth, 1991, op. cit.: 221-222.
56 Foster, op. cit.: 140.
57 Kosuth, 1991, op. cit.: 232. Grifo nosso.

Tânia Rivera é psicanalista e professora da Universidade de Brasília. É pesquisadora do CNPq e realiza estágio pós-doutoral no Programa de Artes Visuais da Universidade do Rio de Janeiro, sob a supervisão da Profa. Dra. Glória Ferreira. É autora de Arte e Psicanálise e Guimarães Rosa e a Psicanálise (ambos por Jorge Zahar Editor) e co-organizadora de Sobre Arte e Psicanálise (Escuta).

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