Uma libra de carne: a leitura
lacaniana d’O visível e o invisível
Charles Shepherdson
Professor de Humanidades na State University of New York
(Albany)
Este corte da cadeia
significante é único para verificar a estrutura do sujeito como descontinuidade
no real. Lacan, Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente
freudiano
Este momento de corte é dominado pela forma
dum retalho sangrento: a libra de carne que paga a vida para fazê-la o
significante dos significantes, como tal, impossível de restituir ao corpo
imaginário. Lacan, A direção da cura e os princípios de seu poder
Uma filosofia da carne é condição sem a qual a
psicanálise permanece antropologia. Merleau-Ponty, O visível e o invisível
O
limite da linguagem
Quando O visível e o
invisível (Le visible et l’invisible)
foi publicado em 1964, Lacan estava ensinando pela primeira vez na École
normale superior. No outono de 1963, no semestre anterior, a Sociedade Francesa
de Psicanálise tinha excluído Lacan de sua lista de analistas em treinamento
aprovados, o que também significou sua rejeição da sociedade fundada pelo
próprio Freud, a Associação Internacional de Psicanálise[i].
Como resultado, Lacan cancelou seu seminário no Hospital Sainte-Anne, onde
realizava cursos há dez anos e onde começou a ensinar pela primeira vez antes
de uma audiência univer - sitária (convidado por Fernand Braudel, Claude
Lévi-Strauss, Louis Althusser e outros que colaboraram para que continuasse a
ensinar). Claro que filósofos como Jean Wahl e Jean Hyppolite tinham se interessado
por seu trabalho há muitos anos, mas essa foi a primeira vez em que os
participantes de seu seminário não precisavam mais de credenciais especiais
para entrar na clínica psiquiátrica do hospital pedagógico. O seminário era
agora aberto ao público, consideravelmente maior do que já havia sido até
então, e seus participantes eram principalmente da universidade. Lacan era
agora obrigado a apresentar seu trabalho diante do mundo acadêmico. O seminário
que ele havia planejado para aquele ano era denomi - nado Os nomes do pai (Les
noms-du-p ère), mas apenas uma sessão foi realizada[ii]
. Quando mudou de Sainte-Anne para a École normale, Lacan ofereceu um curso
diferente, que foi publicado como Seminário XI : Os quatro conceitos
fundamentais da psicanálise (Le seminaire XI: Les quatre concepts fondamentaux
de la psychanalyse original - mente intitulado Os fundamentos da psicanálise
(Les fondements de la psychanalyse). Está claro, portanto, que esse seminário
constitui um novo começo, um retorno aos princípios fundamentais.
Se começamos com esses
detalhes históricos, não é devido à sua importância intrínseca ou porque um
texto teórico pode ser reduzido ao seu meio histórico, mas porque as
observações de Lacan sobre O visível e o invisível só podem ser compreendidas
se reconhecermos as específicas preocupações que lhe ocuparam durante esse
curso[iii].
Entretanto, antes de nos voltarmos a ele,
esbocemos seu horizonte de maneira mais precisa. A infortunada sessão do
seminário Os nomes do pai, publicada na edição inglesa de Télévision (mas não
na francesa), contém uma análise da “voz” que é muito próxima à descrição do
“olhar” que organiza sua discussão sobre Merleau-Ponty (ver Salecl e Žižek 26).
A sessão sobre a “voz” se desenvolve através de uma leitura bíblica da
narrativa de Abraão e Isaac (ver
Derrida 2), que é elaborada por sua vez com referência à pintura
do sacrifício de Isaac de Caravaggio e de Temor e tremor (Frygt og Baeven) de
Kierkegaard. Toda a sessão dá um breve sumário do curso de Lacan sobre a
angústia, do seminário anterior (o
Seminário X, L’angoisse, 1962-3), do qual Heidegger nunca
está longe[iv].
O contexto de sua discussão sobre Merleau-Ponty é, portanto, extremamente
complexo e sobredeterminado, abrindo-se em várias direções, mas ao mesmo tempo
é extremamente preciso, pois o objetivo de Lacan em explorar esses materiais
não é primordialmente filosófico, mas diz respeito a um desenvolvimento bastante
restrito e de um ponto técnico no interior da teoria psicanalítica, a saber, o
problema da pulsão[v].
Temos assim uma orientação inicial: como objetos da pulsão, a “voz” e o “olhar”
não são propriedades do sujeito (o poder de falar ou de ver); como resultado há
uma considerável diferença entre “o olhar”, como funciona em alguma teoria
pelicular, e o olhar como um objeto da pulsão escópica (ver Saper 25).
A discussão de Lacan no Seminário XI a respeito das considerações de Sartre
sobre o olhar (na qual o sujeito voyer é subitamente surpreendido pelo olhar do
outro) é desenvolvida para esboçar uma clara distinção entre a estrutura
sartreana, da qual se deve fazer justiça ao modo peculiar com que a relação
entre dois sujeitos pode vacilar entre “objetivação” e “intersubjetividade”, e
a consideração freudiana da pulsão e seus objetos. Isto sugere que, se Lacan
vai de Sartre a Merleau-Ponty, é porque Merleau-Ponty caminhou para além da
intersubjetividade em direção à constituição de uma “invisibilidade” no coração
do visível. Porém isto apenas acentua a questão de por que Lacan, por sua vez,
discorda de Merleau-Ponty.
Recordemos então os quatro
conceitos tratados por Lacan no Seminário XI: o inconsciente, a repetição, a
transferência e a pulsão (ver
Lacan 8, p. 16/12)[vi]. A divisão editorial fragmenta o seminário em quatro seções e a uma curta
conclusão. A primeira seção é denominada “O inconsciente e a repetição” (L’inconscient et la répétition), e
a terceira, “A transferência e a pulsão” (Le
transfert et la pulsion). Essas duas seções poderiam, então ser
vistas como os quatro tópicos principais que abrangeriam todo o seminário.
Restam duas seções. A segunda contém as observações de Lacan sobre
Merleau-Ponty (que se estendem por quatro capítulos). Os comentários sobre
Merleau-Ponty até este ponto interrompem o seminário, suspendendo-o em seu
âmago, separando o primeiro par, dos “conceitos fundamentais”, do segundo. A
discussão de Lacan sobre O visível e o invisível, por assim dizer, como que
provocando um modo de junção ou um ponto de suspensão, particularmente entre a
consideração do “inconsciente” e da “pulsão”.
Quanto à quarta seção, não
irei desenvolver aqui, embora ela tenha um aspecto crucial na sua análise de
Merleau-Ponty e que possa ser considerada a mais importante contribuição de
Lacan neste seminário, um passo fundamental em relação aos seus primeiros
trabalhos[vii].
Digamos apenas isto: ela nos apresenta como consolidação do trabalho de Lacan
nos dois ou três anos precedentes sobre a sua recusa do valor do inconsciente
como um fenômeno exclusivamente “simbólico”. É o notório conceito “simbólico”
do sujeito que Lacan quer agora complicar ou modificar, acentuando a categoria
do real de um modo não precedente até então[viii].
E é essa ênfase no real que vai dirigir seu interesse no desenvolvimento do
objet petit a, o objeto da pulsão. “Para avançar esta formulação”, diz Lacan,
eu me encontro numa posição problemática – o
que promoveu meu ensinamento sobre o inconsciente? O inconsciente é a soma dos
efeitos da palavra sobre o sujeito (...) o inconsciente é estruturado como uma
linguagem. (...) E portanto este ensinamento teve, no que ele visava, um fim
que eu qualifiquei de transferencial. (Lacan 8, p. 137/149)
Essa dimensão transferencial introduz um
problema, porque Lacan insistiu, nesse seminário, numa nova definição de
transferência, a saber: “a transferência é a colocação em ato da realidade do
inconsciente” (Lacan 8,
p. 137/149, em itálico no original). Nós podemos pensar na
transferência em termos puramente “simbólicos”, como um processo da fala que
permite ao inconsciente mostrar-se através do significante: na forma clássica
do sonho, no lapso ou ato falho, ou em qualquer dessas formações verbais que se
apresentam no “pensamento inconsciente” do sujeito, revelando em forma
simbólica o que o ego não gostaria de dizer. Entretanto se a transferência é
definida como uma colocação em ato da realidade do inconsciente, somos forçados
a concluir que o inconsciente não é reduzível a um fenômeno puramente
“simbólico”. Isto está de acordo com as asserções de Freud, e Lacan
imediatamente aponta esse fato, acrescentando: “A realidade do inconsciente é
(...) a realidade sexual” (Lacan
8, p. 138/150). Seja o que for que ele queira significar
por “realidade sexual”, e por mais complexa que seja a relação entre
“realidade” e “real”, está claro que o inconsciente não é mais entendido em
termos puramente “simbólicos” (ver
Shepherdson, Vital Signs). Como veremos, este novo desenvolvimento
tem uma decisiva postura em sua discussão sobre Merleau-Ponty e no conceito de
“olhar”.
A mesma dificuldade está presente logo no começo do seminário, num
capítulo intitulado “O inconsciente freudiano e o nosso” (L’inconscient freudien et le
nôtre).
“A maioria nesta assembleia tem alguma noção do que adiantei aqui – o
inconsciente é estruturado como uma linguagem”, ele escreveu (Lacan 8, p. 23/20).
É ela [esta estrutura que dá seu
estatuto à inconsciência], em todo caso, que nos assegura que haja sob o termo
de inconsciente alguma coisa de qualificável, de acessível e de objetivável.
Mas quando eu incito os psicanalistas a não ignorarem este terreno”
[...]“isto significa que eu penso me
ater aos conceitos introduzidos historicamente por Freud nesta estrutura
linguística? Podemos manter que o inconsciente (ou “realidade sexual”) é
redutível ao fenômeno simbólico? Pois bem, não! Eu não penso assim. O
inconsciente, conceito freudiano, é outra coisa, que eu gostaria de tentar lhes
fazer apreender hoje (Lacan 8, p. 24/21)
Desta vez, não vamos desenvolver este
pensamento de Lacan. É suficiente reconhecer que o “olhar” introduz uma
dimensão que está localizada no exato limite da ordem simbólica, no sentido de que
o “olhar” marca os “limites de formalização”, o ponto em que a estrutura
simbólica é incompleta. Como tal, o olhar pertence à categoria do real, que não
é nem simbólico nem imaginário, mas está, ao contrário, ligado ao conceito de
falta, um conceito que começa a desempenhar um novo e decisivo papel no
pensamento lacaniano e que nos mostra um desenvolvimento radical na sua
concepção do sujeito. Podemos resumir esse desenvolvimento pela epígrafe
escolhida de seu ensaio Subversão do sujeito e dialética do desejo no
inconsciente freudiano (Subversion
du sujet et dialectique du désir dans l’inconscient freudien),
que fala de um certo rompimento no campo linguístico, uma ruptura na cadeia
significativa: “Este corte da cadeia significante é único para verificar a
estrutura do sujeito como descontinuidade no real” (E, p. 801/229, grifo meu)[ix].
Tendo em mente a
orientação básica de seu trabalho nesse seminário, voltemo-nos à discussão da
segunda sessão, que trata diretamente de Merleau-Ponty, focalizando
particularmente os dois primeiros capítulos dos quatro que tratam d’O visível e
o invisível. A questão que iremos propor é: como a concepção do sujeito como
“descontinuidade no real” é ligada por Lacan à questão do corpo e, em
particular, ao problema da pulsão.
O
“olhar” como objeto
Em 19 de fevereiro de
1964, Lacan entrou em seu seminário e anunciou: “Não é aqui por simples acaso
(...) que foi nesta semana que veio ao alcance de vocês, por sua publicação, o
livro póstumo de nosso amigo Maurice Merleau-Ponty (...)” (Lacan 8, p. 68/71).
Não é um simples acaso porque esse texto remete a um problema que o próprio
Lacan estava tentando resolver, mesmo que os dois pensadores formulassem tal
problema de modos bem distintos. Lacan dedicou a sessão inteira de seu
seminário, e as três semanas posteriores, a O visível e o invisível, colocando
questões que, mesmo não constituindo uma análise filosófica rigorosa do
trabalho de Merleau-Ponty, o trazem de volta constantemente a esse notável
texto.
Seus comentários não são simples de entender. O visível e o invisível é
um texto particularmente obscuro e difícil, mas este não é o único problema. As
referências de Lacan aos trabalhos filosóficos jamais são bem desenvolvidas, e
suas considerações sobre Merleau-Ponty não são uma exceção. Quando ele fala
sobre Hegel ou Aristóteles, é sempre no esforço de clarificar algum detalhe da
teoria freudiana, e não por razões estritamente filosóficas. Além disso, suas
referências são normalmente combinadas com alusões a vários outros textos, de
tal modo que nunca se tem certeza do quanto ele realmente sabe sobre o material
em questão, ou quão precisa sua análise intenta ser. E mesmo quando ele fala
sobre detalhes particulares, como o conceito de acaso (tuche) em Aristóteles, ou a lei moral na teoria ética de Kant, não
se sabe qual a versão do filósofo que ele tem em mente, qual escola de
pensamento ou estrutura interpretativa ele está pressupondo. Ele não elabora
suficientemente o texto filosófico para nos mostrar exatamente o que entende
estar dizendo o autor, e isto dificulta ver o que Lacan está criticando quando
objeta, e o que aprova quando concorda. Deve-se, assim, reconhecer de início
que não podemos encontrar nada como uma descrição propriamente filosófica de
Merleau-Ponty ou uma exegese responsável nos quatro capítulos que tratam d’O
visível e o invisível. Nem se pode dizer que ele faz justiça a essa obra ou que
ele nos leva longe em sua intrincada estrutura tecida.
Há razões pelas qual Lacan
dedica sua atenção a O visível e o invisível, reconhecendo sua importância, mas
demarcando o que ele toma como sendo as limitações de seu trabalho. É possível,
então isolar algumas proposições e apreender os traços essenciais no encontro
de Lacan com Merleau-Ponty. Se ele está preocupado, como sempre, com a teoria
freudiana mais do que com a tradição filosófica, pode ser possível apreender o
que na psicanálise o conduz a fazer a específica reivindicação a Merleau-Ponty
que encontramos no Seminário XI.
Poderíamos esperar que
Lacan tomasse o trabalho de Merleau-Ponty nos termos da categoria do imaginário
e no seu papel na formação do corpo – explorando o conceito da Gestalt e a
questão do campo visual como uma formação imaginária que vai além das teorias
clássicas da percepção, sensação ou experiência visual. Mas não é isso que
interessa Lacan em 1964. Poderíamos esperar dele uma acentuação da ordem
simbólica, e mesmo que celebrasse a aproximação de Merleau-Ponty a Saussure ou
o criticasse por abordar a questão da linguagem sem dar atenção suficiente ao
inconsciente. Mas não é isso o que encontramos em sua análise de O visível e o
invisível. Poderíamos esperar, finalmente, que ele levasse em conta a mais
importante realização de Merleau-Ponty, que é sua marcante análise da relação
entre o visual e o verbal – a complexa interação entre linguagem e percepção
que nós encontramos no capítulo sobre o quiasma (le chiasme), no ensaio O olho e o espírito (L’oeil et l’Esprit), ou no impressionante trabalho sobre a pintura,
no qual Merleau-Ponty mostra como cor, textura e o arranjo material da pintura
já têm um ritmo, uma harmonia, uma linguagem e um sistema que contêm sua
própria lógica, seu próprio modo de idealidade, sua própria estrutura de
memória e rigorosa abstração[x].
“Desde que este estranho
sistema de trocas é dado”, Merleau-Ponty escreve n’O olho e o espírito, “todos
os problemas da pintura estão aí” (Merleau-Ponty 15, p.21/164). E novamente, no
capítulo sobre o quiasma, ele escreve:
(...) ela [a idealidade “pura”] funde-se já à
articulação do corpo estesiológico, aos contornos das coisas sensíveis (...) É
como se a visibilidade que anima o mundo sensível emigrasse, não para fora de
todo corpo, mas dentro de um outro corpo menos pesado, mais transparente, como
se ela mudasse de carne, abandonando aquela do corpo para aquela da linguagem
(...) (Merleau-Ponty 18, p. 200/152-3)
A “idealidade” seria,
então dada não como um sistema lógico da filosofia tradicional, mas por aquele
nível de abstração que está agarrada ao olho e à mão do pintor, esse processo
de “emigração” que permite ao mundo visível habitar o domínio da linguagem.
Lacan se envolveu por muitos anos com o problema da interação entre o
imaginário e o simbólico, e talvez não haja outro pensador que tratou desse
problema com mais cuidado e sensibilidade que Merleau-Ponty. Mas isto não é
ainda o que interessa Lacan quando ele se volta ao último trabalho de
Merleau-Ponty.
Em vez disso, vemos que
suas notações são inteiramente focalizadas no conceito freudiano de pulsão; por
isso, ele se volta às considerações sobre o “olhar” em Merleau-Ponty para
alegar que o olhar não é uma questão da visão ou da percepção, nem mesmo uma
questão do horizonte invisível de visibilidade, mas que, antes, ele deve ser entendido
como um objeto e mais precisamente como um objeto da pulsão. Em resumo, o “olhar”
é uma versão do “objeto a” de Lacan, e por isso ele diz respeito à categoria do
real, que não é nem simbólica nem imaginária. Como ele diz no capítulo
intitulado “O que é um quadro?” (Qu’est-ce qu’un tableau?):
“O objeto a no campo do visível é o olhar” (Lacan 8, p. 97/105) O “olhar” é, portanto
colocado, por Lacan numa série de objetos, cada qual correspondendo a uma
diferente dimensão corporal, a um diferente aspecto do corpo. Como sabemos,
Freud distingue diferentes formas de pulsão, e nós encontramos em seu trabalho
uma série de objetos, o “seio”, as “fezes”, o “falo” e assim por diante,
objetos que correspondem às fases oral, anal e fálica; Lacan acrescenta
elementos à lista freudiana, dando especial atenção a dois outros objetos, o
olhar e a voz – o primeiro sendo objeto da pulsão escópica, e o segundo sendo
objeto do que ele chamou de pulsão vocativa. As considerações de Merleau-Ponty
sobre o olhar são, assim, tomadas por Lacan em termos do objeto da pulsão
escópica e, consequentemente, em termos de um momento bem específico na
constituição do sujeito. Isto o leva a uma série de questões que são
inteiramente afastadas do que Merleau-Ponty questionava em seu trabalho final.
Essa diferença de orientação é considerável e não deveria ser esquecida, pois
mostra, como Lacan veio a encontrar os seus próprios interesses já presentes,
de modo velado ou indireto, em Merleau-Ponty.
Além
da “intencionalidade”: O olhar e o supereu
Nós podemos distinguir três momentos distintos
nas considerações de Lacan em O visível e o invisível: uma que designa o
contínuo caminho do trabalho de Merleau-Ponty, outra que destaca o que é novo
em seu último escrito e, finalmente, um momento no qual Lacan afasta-se de
Merleau-Ponty. Esses três momentos são acentuados em várias ocasiões por Lacan,
e merecem melhor elaboração.
No Seminário XI, no capítulo denominado “A esquize do olho e do olhar”
(La schize de l’oeil et du regard),
Lacan escreve: “O visível e o invisível pode nos apontar o momento de chegada
da tradição filosófica (...) Nessa obra, ao mesmo tempo terminal e inaugural,
vocês descobrirão uma lembrança e um passo à frente” em relação à Fenomenologia
da percepção (Phénoménologie de la perception)
(Lacan 8, p. 68/71).
Ele elabora essa lembrança como se segue:
Ali se encontra, com efeito,
lembrada a função regulatória da forma (...) à qual preside, não somente o olho
do sujeito, mas toda sua atenção, seu movimento, sua tomada, sua emoção
muscular e também visceral – logo, sua presença constitutiva, apontada naquilo
que se denomina sua intencionalidade total. (Lacan 8, p. 68-9/71)
Como sempre, essa atenção
à forma e ao poder formativo da vida encarnada é posta para evitar a
alternativa entre o idealismo e o empirismo. Começando com o movimento gradual,
quase-dialético[xi],
no qual o mundo toma forma e é compreendido pela experiência atual, provendo
assim o sujeito com o horizonte finito, material de sua própria existência
corporal e de atividade cognitiva, a atenção de Merleau-Ponty para a forma
tenta evitar a divisão entre sujeito e objeto, ou seja, a alternativa que nos
força a escolher entre: 1) o sujeito tradicional, constituinte cujas
representações poderiam servir como a origem transcendental das coisas e 2) o
domínio da positividade empírica que precederia a consciência e existiria
independentemente, esperando com paciência a exploração do sujeito. Essa
concepção de forma também possibilita uma análise mais cuidadosa do corpo. O
corpo nos proporciona um ponto de acesso às coisas, mas participa também das
coisas em si mesmas: sua carne é a carne do mundo. “Certamente”, Merleau-Ponty
diz no capítulo sobre o quiasma,
pode-se responder que existe (...) o
abismo que separa o Em-si do Para-si. (...) Mas aqui, procurando formar os
nossos primeiros conceitos de modo a evitar os impasses clássicos, nós não
temos que dar preferência às dificuldades que eles podem oferecer (...) (Merleau-Ponty
18, p. 180/136-47).
Como o conceito de forma,
a questão do corpo, continua a proporcionar a Merleau-Ponty um ponto de partida
propriamente fenomenológico que corrigiria as deficiências e contradições da
tradição filosófica[xii].
Lacan começa reconhecendo a continuidade entre esse novo vocabulário da “carne”
e os trabalhos anteriores de Merleau-Ponty, notando que a relação entre aquele
que olha e aquilo que é visto, entre aquele que toca e que é tocado, é, em
alguns aspectos, uma reformulação de considerações anteriores.
Em adição a essa
recapitulação, contudo, nós também encontramos algo novo: “Merleau-Ponty dá
agora um passo à frente forçando os limites desta fenomenologia” (Lacan 8, p. 69/71-2).
Como Lacan caracteriza esse “passo à frente” e o que lhe permite ver isto como
marcando os “limites da (...) fenomenologia”? Lacan adverte que devemos
entender o “passo adiante” de Merleau-Ponty através do conceito de invisível,
um conceito que Lacan especifica em termos das considerações do olhar em
Merleau-Ponty e, mais precisamente, em termos da divisão entre o olho e o
olhar. Com o conceito de “invisível”, Merleau-Ponty chama nossa atenção para o
que podemos chamar de dependência do visível para com o olhar que o precede, um
olhar que abre o domínio da visibilidade. Como Merleau-Ponty diz,
“É como se a nossa visão se formasse
no seu coração [do visível]”. Ele elabora: O que há então, não são as coisas
idênticas a elas mesmas que, em seguida, se ofereceriam ao vidente [au voyant],
e não é um vidente vazio antes de tudo que, em seguida, se ofereceria a elas,
mas alguma coisa de que não poderíamos estar mais perto senão lhe apalpando com
o olhar [en le palpant du regard], porque o olhar mesmo as envolve, as veste
com sua carne. De onde vem que, fazendo isto, ele as deixa em seu lugar, que a
visão [la vision] que nós as tomamos nos parece vir delas (...)? (Merleau-Ponty
18, p. 173/131, grifo meu)
Nós devemos sublinhar esta
frase final, porque é tal independência peculiar do mundo visível que interessa
a Lacan – não a existência autônoma das coisas empíricas (um tema clássico da
filosofia), mas o modo peculiar através do qual a visão ocorre apenas sob a
soberania e a experiência penetrante do olhar que vem das coisas em si mesmas,
um olhar que prolonga a si no ato mesmo da experiência sensória de alguém.
“Qual é este talismã da cor”, Merleau-Ponty escreve,
é esta virtude singular do visível
que faz com que, mantido no término do olhar, ele seja entretanto bem mais que
um correlativo de minha visão, sendo ele que me a mim e a minha visão impõe
como uma sequência de sua existência soberana? (Merleau-Ponty 18, p. 173/131,
grifo meu)
E novamente, numa outra
passagem, Merleau-Ponty escreve:
(...) é preciso que aquele que olha
não seja ele mesmo estrangeiro ao mundo que ele olha.(...) É necessário(...)
que a visão seja duplicada por uma visão complementar ou por uma outra visão:
eu mesmo visto de fora, tal como um outro me veria, instalado no meio do
visível (...)”(Merleau-Ponty 18, p. 177/134)
É essa imposição (“que me [a mim e a
minha visão] impõe”), essa invisibilidade soberana do olhar que precede todo o
nosso ver, que permite a Merleau-Ponty reestruturar a totalidade da questão da
“intencionalidade” e da relação sujeito-objeto.
O que Lacan toma dessa
análise? Ele é claro: “O que se trata de circunscrever, pelas vias do caminho
que ele nos indica, é a preexistência do olhar – eu vejo somente de um ponto,
mas em minha existência eu sou visto por todos os lados” (Lacan 8, p. 69/72).
Essa experiência de estar sob o olhar é o que constitui o “passo adiante” de
Merleau-Ponty de acordo com Lacan: “Eu entendo, e Merleau-Ponty nos aponta, que
nós somos os seres olhados no espetáculo do mundo” (Lacan 8, p. 71/74-5).
Chegamos assim no segundo
estágio da leitura lacaniana, no ponto onde podemos compreender o que é novo no
último trabalho de Merleau-Ponty. Por que, então, Lacan acha necessário
reformular as considerações do “olhar” de Merleau-Ponty? Antes de tomarmos essa
questão, abramos um parêntese – uma vez que, neste segundo estágio dos
apontamentos de Lacan, é possível localizar uma certa convergência entre as
observações de Merleau-Ponty e as considerações da teoria freudiana. Diante da
análise de Merleau-Ponty e antes de qualquer divergência com Lacan, podemos nos
perguntar o que o psicanalista irá fazer com o “olhar”. Como Lacan irá
desenvolver a pretensão merleaupontyana e o que ele vê como importante para
nossa compreensão do sujeito? O “olhar” é um problema do imaginário ou do
simbólico? Isto vai levar Lacan a refletir sobre o narcisismo ou seria antes
uma questão do supereu – um reflexo da punição e da presença obscuramente
malévola que parece nos observar de cima, invisível e onipresente, como um
agente da lei que subitamente mostra sua face sádica? Alguns lembram da última
sentença do ensaio As relações com outro na criança (Les relations avec autrui
chez l’enfant) de Merleau-Ponty:
Pode-se interrogar sobre a relação
que se deve estabelecer entre a crise dos três anos da qual diz Wallon e a fase
edipiana do desenvolvimento que alguns psicanalistas situam no mesmo momento
com a qual se esboça o superego, a verdadeira relação ‘objetal’ e a
ultrapassagem do narcisismo. (Merleau-Ponty 14, p. 229; PP, p.155, grifo meu)
Poderia ocorrer que, no
momento mesmo que o narcisismo é aparentemente superado, no momento mesmo que o
excesso do ego parece estar dominado e uma relação “objetal” madura com o mundo
é estabelecida, paradoxalmente, nos depararíamos também com um momento no qual
a dimensão mais não-natural do Outro é manifestada? Poderia ocorrer que a
suposta transcendência do narcisismo se vincularia, de algum modo, à peculiar
produção do olhar, o que significa dizer que o fato mesmo da visão, a
experiência sensória mais “natural”, seria assombrado por uma presença
peculiar, invisível e tirânica, uma presença que não pode ser vista mas que nos
olha e governa secretamente o movimento do corpo com sua própria malícia ou
intenção estranha, solicitando nosso olhar, direcionando nossa visão como uma
extensão de sua existência imperiosa? O que isto significa para Lacan e para a
teoria do sujeito, quando Merleau-Ponty abre esta experiência na qual nós somos
“(...) olhados no espetáculo do mundo” (,
p. 71/74-5)? É uma questão do narcisismo ou algo que emerge precisamente
no ultrapassamento do narcisismo?
Merleau-Ponty certamente
parece considerar a primeira possibilidade quando escreve estas palavras no
capítulo sobre o quiasma: “De modo que o vidente, estando preso no que vê [le voyant étant pris], é ainda ele mesmo
que ele vê: há um narcisismo fundamental em toda visão”. E a passagem continua
assim:
Pela mesma razão, a visão que ele
exerce, ele a sofre também por parte das coisas, que, como dizem muitos
pintores, eu me sinto olhado [je me sens
regardé] pelas coisas, minha atividade é identicamente passividade – é este
o sentido segundo e mais profundo do narcisismo: não ver por fora, como os
outros o veem, o contorno de um corpo que é habitado, mas sobretudo ser visto
por ele, existir nele, emigrar para ele, ser seduzido, captado, alienado pelo
fantasma, de modo que vidente e visível sejam recíprocos e não saiba mais quem
vê e quem é visto [qui voit et qui est vu]. (Merleau-Ponty 18, p. 183/139,
grifo meu)
Assim, o olhar no sentido
merleau-pontyano só poderia parecer emergir no momento em que o narcisismo é
ultrapassado, apenas quando o espelho não mais me remete a mim mesmo numa forma
imaginária, apenas quando meu corpo não está mais em sua possessão, em sua
unidade, mas está antes nessa abertura ao mundo na qual “vidente e visível são
recíprocos e não sabemos mais quem vê e quem é visto”. Não levemos adiante essa
questão. É suficiente ver o primeiro ponto de contato entre Merleau-Ponty e
Freud, como Lacan parece lhes apresentar. Fechemos este parêntese e continuemos
em nossa exegese.
O conceito do olhar é uma recapitulação, mas é também um
“passo adiante” em relação às primeiras análises da forma e da Gestalt. E esse
passo adiante poderia marcar o limite da fenomenologia, na medida em que ele
abre uma certa invisibilidade no coração do visível, algo que não pode ser
visto, que está além da “aparência” e do “fenômeno”, mas que olha para mim como
eu olho para o mundo, com um olhar que solicita previamente minha visão, mesmo
antes que eu comece a ver. E desde que isto seja uma questão de ser visto, de
ser “olhado de todos os lados”, o olhar não é mais uma propriedade do sujeito,
um poder de ver ou de especular, mas alguma coisa que vem do mundo das coisas.
O olhar não é mais uma propriedade do sujeito, mas não é também uma propriedade
dos objetos, um fenômeno natural, um traço do mundo empírico, nem uma
característica da luz, mas algo que precede o domínio do visível e se revela à
nossa visão. Isto seria o passo de Merleau-Ponty para além da fenomenologia,
como Lacan o apresenta: o olhar não pertence às coisas empíricas, mas designa
uma dimensão da invisibilidade – não uma esfera transcendente, mas um domínio
da experiência que é única ao animal humano, e isto captura a característica
peculiar da encarnação humana, alguma coisa que não pode ser agarrada em termos
de “sujeito” e “objeto”, percepção sensória e positividade externa.
N’O
olho e o espírito, Merleau-Ponty não fala sobre a
visibilidade, mas sobre o “solo do mundo sensível e do mundo cultivado”: “é
preciso que o pensamento científico ele escreve,
torne a se colocar num “há” prévio,
na paisagem, sobre o solo do mundo sensível e do mundo cultivado tal como é em
nossa vida, para nosso corpo, não o corpo possível no qual é lícito sustentar
que ele seja uma máquina de informação, mas este corpo atual que eu digo meu
(...) [um corpo que só pode ser entendido em sua conjunção com] corpos
associados (...), os “outros” (...) que me assediam e que eu assedio (...) como
jamais os animais assediam aqueles de sua espécie (....) (Merleau-Ponty 15, pp
12-3; 16, pp 160-1)
É portanto uma questão do
corpo, não como um organismo com sua capacidade sensório-motora, suas memórias
e expectativas, mas como um fenômeno humano exclusivo: não um corpo como “(...)
um pedaço de espaço, um feixe de funções, mas um entrelaçado de visão e de
movimento” (Merleau-Ponty
15, p. 16; 16, p. 162), o corpo sem o qual “(...) não haveria
humanidade” (Merleau-Ponty
15, p. 20; 16, p. 163).
Em resumo, o olhar não é
uma propriedade do sujeito, mas também não é uma propriedade das coisas, um
traço do visível em si mesmo. Ele não tem uma imagem especular, mas é antes
algo invisível, algo que não pode ser visto, mas que no entanto vem do mundo
das coisas, algo que, na linguagem de Lacan, vem do Outro, precedendo minha
visão e solicitando-a a seguir, “que me [a mim e a minha visão] impõe” (Merleau-Ponty 18, p. 173/131),
continuando a si no ato mesmo da minha visão, reduzindo a mais ativa exploração
sensória a uma fundamental passividade, e na verdade ao ponto de podermos falar
de aniquilação do sujeito (Lacan
8, pp. 78, 83/82, 88).
O olhar é algo ao qual estou assujeitado. É isto que Lacan isola do último
trabalho de Merleau-Ponty: “Esse ver ao qual estou submetido de um modo
original – eis aí sem dúvida o que deve nos levar à ambição desta obra (...)” (ver Lacan 8, p. 69/72, grifo meu)[xiii].
Negociação platônica:
chora ou sujeito?
Assim, de acordo com Lacan, temos n’O visível e o invisível uma recapitulação dos temas anteriores e
também um passo adiante, que consiste na elaboração do conceito do olhar.
Finalmente, devemos destacar o ponto do qual Lacan se distancia de
Merleau-Ponty, o ponto do qual sua análise do olhar toma uma direção diferente.
Porque ele também escreve neste capítulo que “o campo que nos dá Maurice
Merleau-Ponty (...) se apresenta por suas incidências mais factícias, senão as
mais caducas” (Lacan 8,
p. 69/72).
Ele continua:
Mas não é entre o invisível e o
visível que nós temos que passar. A esquize que nos interessa não é a distância
que se mantém entre o que existe de formas impostas pelo mundo e aquilo contra
o que a intencionalidade da experiência fenomenológica nos dirige (...). O
olhar só se apresenta a nós sob a forma (...) da nossa experiência, a saber, a
falta constitutiva da agonia da castração. O olho e o olhar, tal é para nós a
esquize na qual se manifesta a pulsão no nível do campo escópico. (Lacan 8, pp.
69-70/72-3)
Nós distinguimos três
momentos na análise de Lacan: primeiro, um reconhecimento daqueles elementos n’O visível e o invisível que se
aprofundam e que dão sequência à trajetória da totalidade filosófica de
Merleau-Ponty; segundo, a introdução de um novo começo genuíno, o horizonte
invisível da visibilidade; e, finalmente, uma divergência, na qual a análise de
Merleau-Ponty seria deficiente, isto a partir de um ponto de vista freudiano.
No próximo capítulo, “A
anamorfose” (L’anamorphose), nós
encontramos os mesmos três passos. Esse capítulo fornece uma análise da pulsão
escópica e Lacan retorna novamente a Merleau-Ponty, confessando que “(...) a
função escópica se situa (...) na obra que acaba de ser publicada de Maurice
Merleau-Ponty, O visível e o invisível” (Lacan
8, p. 75/79). Neste ponto, tendo introduzido o nome de
Merleau-Ponty, Lacan lembra de algumas das maiores figuras da tradição
filosófica e, em duas páginas, ele recorre a várias concepções do sujeito: 1)
“(...) o caminho irredutível do bispo Berkeley (...) que chega a reduzir o
sujeito que percebe a meditação cartesiana a um poder de nadificação”; 2) a
revolução hegeliana que “(...) faz oscilar efetivamente o sujeito contra a ação
histórica transformante (...)”; e, finalmente, 3) “quanto à meditação sobre o
ser que chega a seu cume no pensamento de Heidegger, restituindo ao ser mesmo o
poder de nadificação (...)” (Lacan
8, p. 77/81). Isto não nos diz muito a respeito da tradição
filosófica, mas nos permite ver como Lacan situa o trabalho de
Merleau-Ponty: “É bem aí que nos leva também Merleau-Ponty” (Lacan 8, p. 77/81).
Aqui, novamente, de acordo com Lacan, nós temos uma continuação da tradição
filosófica em sua reflexão a respeito do sujeito, assim como a respeito de
certa “negatividade” no sujeito, algo que novamente é formulado de um modo a nos
levar direto ao limite dessa tradição, à mais profunda investigação ontológica
de Heidegger[xiv].
Nós estamos agora com a concepção de “carne” apresentada como o elemento no
qual meu corpo é dado assim como as coisas em si mesmas. Como o próprio
Merleau-Ponty diz:
É que a espessura da carne entre o
vidente e a coisa é constitutiva de sua visibilidade a ela como de sua
corporeidade a ele; isto não é um obstáculo entre eles, é seu modo de
comunicação. (...) É a este título, e não como portador de um sujeito que
conhece, que nosso corpo comanda para nós o visível, mas ele não o explica, não
o esclarece, ele não faz senão concentrar o mistério de sua visibilidade
esparsa; trata-se com razão de um paradoxo do Ser, e não um paradoxo do homem.
(18, pp. 178-80/135-6)
Seguindo Merleau-Ponty e
vendo seu trabalho como um caminho que nos leva direto ao limite da tradição,
ao ponto em que a questão do sujeito não pode mais ser colocada em termos
antropológicos, Lacan insiste, entretanto, que Merleau-Ponty não nos leva suficientemente
longe, ao menos não tão longe para alcançar o que está em questão nas
considerações psicanalíticas da função escópica, do olhar como um objeto da
pulsão. Seguindo seu sumário da tradição e sua referência a Heidegger, Lacan
escreve:
É bem aí que nos leva (...)
Merleau-Ponty. Mas, se vocês se reportarem ao texto, vocês verão que é neste
ponto que ele escolhe recuar para nos propor retornar ao caminho da intuição
concernente ao visível e ao invisível, de voltar ao que está antes de toda
reflexão, tética ou não-tética, a fim de marcar o surgimento da visão mesma.
Trata-se para ele de restaurar (...) a via pela qual, não do corpo, mas de
alguma coisa que denomina de carne do mundo, pôde surgir o ponto original da
visão. (Lacan 8, p. 77/81-2)
Por que Lacan vê a
meditação merleau-pontyana como algo que de algum modo está em falta e se
afasta diante de suas consequências mais radicais? Seria porque as
considerações do olhar em Merleau-Ponty de algum modo ficam nos limites da
tradição da metafísica ou são marcadas por um certo “platonismo”? Alguns
escritores (particularmente os analistas lacanianos) reivindicaram precisamente
isto, argumentando que, para Merleau-Ponty, há uma presença onividente, algo
como um ser divino platônico que permanece inobservável, invisível, mas que
olha para nós e que direciona nossa visão para o esplendor do mundo fenomenal (ver Quinet 22;23).
Esta é uma consideração redutiva e errônea sobre a obra de Merleau-Ponty e o
próprio Lacan não parece concordar com isto. Sem dúvida, é uma compreensão
possível, um modo possível de se posicionar, ou talvez de cometer um engano a
respeito dessa estranha experiência do olhar. Como Lacan diz: “O espetáculo do
mundo, neste sentido, nos aparece como onividente. Está aí o fantasma que nós
encontramos na perspectiva platônica, de um ser absoluto (...)” (Lacan 8, p. 71/75).
Mas nós não temos que colocar essa fantasia de um ser absoluto no lugar do
“fenômeno” (se se pode ainda utilizar este termo) que Merleau-Ponty descobriu
para nós, mesmo que o fenômeno do olhar também possa explicar a fantasia que
ele torna possível. Lacan escreve: “Não precisamos, de modo algum, nos reportar
a qualquer que seja a suposição da existência de um vidente universal” (ibidem, p. 71/74).
Sejamos mais precisos neste ponto: Lacan parece se entreter por um momento com
possibilidade de Merleau-Ponty realmente tornar-se vítima da ideia de um
vidente universal “platônico”, uma espécie de “substância” ou “elemento”
primordial que poderia preceder o sujeito e servir como o lugar de seu
nascimento, sua origem, chora e assim por diante. Referindo-se ao “olhar” que
vem do mundo e que solicita nossa visão anterior, assim como ao conceito de
“carne”, Lacan escreve:
Parece assim que, nessa obra
inacabada, se esboça alguma coisa como a pesquisa de uma substância inominada
de onde eu mesmo, o vidente, me extraio. Da armadilha [rets], ou do raio [rais]
se vocês preferirem, de um brilho do qual antes de tudo sou uma parte, eu surjo
como olho (...) (Lacan 8, p. 77/82)
Desse ponto de vista, o
olhar seria algo que, na arena da visão, funciona como a chora, a substância
primordial ou lugar que precederia o sujeito e do qual o sujeito emergiria. Mas
isto não é o que Lacan pensa que Merleau-Ponty esteja fazendo[xv].
Ele imediatamente acrescenta: “Mas era esse mesmo o caminho, portanto, que ele
gostaria de tomar? Os traços que nos restam da parte por vir de suas meditações
[i.e. as “notas de
trabalho”]
nos permite duvidar disto” (Lacan
8, p. 77/82). O que então Merleau-Ponty está fazendo, se ele não está
se engajando no grande empreendimento especulativo da tradição metafísica, “a
pesquisa de uma substância inominada”? Do ponto de vista de Lacan, ele “estaria
talvez se dirigindo a uma pesquisa original em relação à tradição filosófica, a
esta nova dimensão da meditação sobre o sujeito que a análise permite, a nós,
traçar” (Lacan 8, pp.
77-78/82, grifo meu). É, portanto, uma nova meditação sobre o
sujeito, e não uma especulação metafísica de uma substância primordial, que
Lacan encontra no conceito do olhar.
Sobre
o sacrifício: o outro e o objeto
Então por que ele insiste
que a psicanálise deve se afastar de Merleau-Ponty ou que nós encontraremos na
psicanálise uma discussão mais precisa do olhar do que esta que encontramos em
Merleau-Ponty? A resposta a tal questão é óbvia: enquanto Merleau-Ponty
apresenta o olhar como alguma coisa que vem do mundo – não dos objetos no
mundo, mas do mundo como um todo, o mundo num sentido fenomenológico e talvez
até mesmo da experiência da mundanidade do mundo, este horizonte invisível no
qual as coisas visíveis encontram seu lugar – em outras palavras, enquanto
Merleau-Ponty apresenta o olhar como algo que, na linguagem lacaniana, vem do
Outro, Lacan vê, ao contrário, o olhar como um objeto, não como uma coisa
empírica, mas como uma forma específica do objet
petit a e, mais precisamente, como o objeto da pulsão escópica. O que isso
significa e qual é sua importância para nossa compreensão do sujeito?
A fim de
clarificar este ponto final, retornemos à questão da passividade, retornemos ao
ponto no qual Lacan fala sobre a experiência do olhar como alguma coisa “à qual
eu estou assujeitado”, para então falarmos do “aniquilamento do sujeito”. Na
experiência do olhar, “(...) nós somos os seres olhados no espetáculo do mundo”
(Lacan 8, p. 71/74-5).
Nosso olhar é solicitado anteriormente por um olhar que continua a si no
próprio ato da minha percepção. Assim, na experiência do olhar, minha percepção
é revelada em sua passividade fundamental – não uma passividade entendida como
o familiar oposto de “atividade”, mantendo um dualismo simétrico e binário, mas
outra, mais fundamental, uma passividade mais primordial, na base das quais
ambas são possíveis: passividade e atividade. É uma questão da experiência
elementar que precede a divisão entre sujeito e objeto e que torna ambas
possíveis: minha recepção passiva do dado sensorial e minha atividade
intencionalmente direcionada para a exploração do mundo[xvi].
A carne nos abre para uma fundamental passividade na qual atividade e
passividade, sujeito e objeto, não mais mantêm seu sentido tradicional.
Acentuando este ponto e destacando a riqueza notável da prosa de Merleau-Ponty
e sua atmosfera de sensualidade luxuosa, Lacan formula a seguinte questão: “Não
há satisfação de estar sob este olhar (...)?” (Lacan 8, p. 71/75). Por que Lacan foca a
questão da “satisfação” precisamente nesse momento, precisamente nesse nível da
estrutura do sujeito?
Nós fomos levados por
Merleau-Ponty a ver o modo notável com o qual nosso olhar já está dominado, já
compelido a emigrar para além de si, a ser seduzido e cativado anteriormente
pelo olhar do mundo, um olhar que continua a si em minha experiência da visão,
como se minha visão fosse o implemento e o meio de um olhar que vem do Outro.
“O que isto quer dizer”, Lacan pergunta, senão que “alguma forma de elisão do
sujeito se mostra”? (ibidem,
p. 72/75).
Cem páginas depois, Lacan retoma este ponto alegando que é precisamente no
embate com sua falta, com sua radical divisão, e como uma única tentativa de
rodear esta divisão, que “(...) o sujeito se faz o objeto de uma outra vontade
(...)” (ibidem, p.
168/185, grifo meu). “É o sujeito que determina a si mesmo
como objeto em seu encontro com a divisão da subjetividade” (ibidem, p. 168/185).
Nós vemos assim, mais claramente, a função do objet petit a em Lacan, como um paradoxo “objeto de falta”, uma
localização de falta, uma “particularização” que permite que a falta no Outro
seja velada no momento mesmo de sua manifestação – e velada de um modo
inteiramente preciso, a saber, numa peculiar instância de substituição
(metáfora), que Lacan considera como sacrificial, desde que o sujeito se
oferece a si como o objeto que se mostra faltando no Outro, se identificando
com a “Coisa” perdida primordialmente que torna a ordem simbólica incompleta. É
por isso que Lacan declara que a experiência do olhar se relaciona com a falta
que constitui a “angústia de castração”: “O olho e o olhar, tal é para nós a
esquize na qual se manifesta a pulsão no nível da pulsão escópica” (ibidem, p. 70/72-3).
“Neste nível, nós não somos forçados a entrar em nenhuma consideração da
subjetivação do sujeito. O sujeito é um aparelho. Esse aparelho é alguma coisa
de lacunar, e é na lacuna que o sujeito instaura a função de um certo objeto,
enquanto objeto perdido” (ibidem,
p. 168/185). Em resumo, na experiência do olhar é o sujeito que
se identifica com o objeto que faria o Outro completo, desvanecendo ou
desaparecendo num movimento sacrificial de identificação.
Em 1963, durante a única
sessão do seminário que foi cancelada, Os nomes do pai, Lacan fornece uma consideração
notável do sacrifício de Isaac e a relação simbólica que permite ao carneiro
ser substituído pela criança, assim também definindo uma nova relação entre o
povo judeu e o Outro, além dessa “libra de carne”, além do labor sacrificial
que procura satisfazer a jouissance divina [o gozo divino]. Em face do enigma
apresentado pelo inescrutável Outro, o vazio que é aberto por esta “questão de
ser” (“O que o Outro quer de mim?”), o sujeito só pode ser impulsionado a uma
angústia profunda e não-natural – uma angústia que traz consigo uma peculiar
tentação: nas palavras de Lacan, “(...) oferecer-se aos obscuros deuses um
objeto de sacrifício, eis algo a que poucos sujeitos podem não sucumbir, numa
monstruosa captura” (ibidem,
p. 246/275) O pacto simbólico de substituição representado pela
mão do anjo, uma mão que está ao alcance de tocar a mão de Abraão, parando-a no
instante mesmo do corte sacrificial, no exato limite da Lei, é portanto um novo
modo de tocar, um novo modo de negociar a divisão, no campo do Outro, entre
desejo e jouissance.
É aqui que encontramos a
mais clara divisão entre Lacan e Merleau-Ponty: para Lacan, a análise de
Merleau-Ponty nos mostra – talvez sem intentar fazer isto – o que Freud quis
dizer quando falou da satisfação da pulsão, que numa frase Lacan lembra
perguntando: “Não há satisfação de estar sob este olhar (...)?” (ibidem, p. 71/75).
Para Lacan, trata-se de uma questão relativa ao prazer peculiar com o qual
vemos simultaneamente a aniquilação do sujeito, o desvanecimento ou o
desaparecimento do sujeito, essa marca fundamental da morte na qual Freud
insistiu quando escreveu que todas as pulsões são pulsões de morte. Para Lacan,
é uma questão de distinção entre o prazer da pulsão, aquele prazer no qual o
sujeito desaparece (que Lacan chama de jouissance) e, por contraste, a ordem do
desejo no qual o sujeito encontra sua vida. De acordo com Lacan, esta é a
antítese que Merleau-Ponty descobre, sem perseguir isto na direção que Freud
nos exige tomar: a experiência de estar sob o olhar e, mais precisamente, a
satisfação que acompanha isto, essa é precisamente a experiência da pulsão
escópica, esta experiência primordial que é sempre uma possibilidade do
sujeito, mas na qual o desejo é perdido e o sujeito se move para sua própria
aniquilação.
Referências
bibliográficas
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32. WEBER, Samuel. Return to Freud:
Jacques Lacan’s dislocation of Psycho - analysis. Cambridge: Cambridge
University Press, 1991.
[i] Esta foi a segunda maior ruptura no mundo psicanalítico
francês; a primeira ocorreu quando o seminário de Lacan começou. Para
informações adicionais sobre fundo histórico desse momento do trabalho de
Lacan, ver Roudinesco (24)/30. Ver também Turkle, que notou que no período
anterior que levaria ao primeiro seminário de Lacan “os analistas franceses
‘oficiais’ eram poucos em número (na véspera da Segunda Guerra Mundial, havia
apenas vinte e quatro)” e mesmo estes eram distinguidos por “sua marginalidade
ao estatuto de psiquiatria da França e do estatuto da psicanálise de Freud” (ibid.,
p. 101). Foram ainda piores as condições após a guerra; ela diz: “os anos de
Vichy e a ocupação nazista dizimaram a Sociedade Psicanalítica de Paris: havia
mortes, uma resignação, os analistas suíços que estavam trabalhando em Paris
foram para Gênova, e Loewenstein (o analista de Lacan) mudou-se definitivamente
para Nova York. Em 1945, a Sociedade Psicanalítica de Paris tinha ao todo onze
membros... A Sociedade parisiense respondeu ao seu despovoamento
com recrutamento agressivo de candidatos e empenhando-se para expandir. Por
volta de 1951-52, ela tinha setenta novos analistas em treinamento” (ibid., p.
103). Essa expansão era o contexto para a ruptura que ocorreu quando o seminário
de Lacan começou, e dizia respeito, em parte, à questão da configuração da
análise, com Sasha Nacht, que presidia e estava de saída, insistindo que todos
os analistas fossem médicos, contra a política duradoura do grupo francês –
cujos estatutos de treinamento foram escritos por Lacan. A segunda divisão
ocorreu dez anos depois, em 1963, quando o grupo, que se formou durante a
primeira divisão, excluiu Lacan de sua lista de analistas em treinamento autorizados,
principalmente como parte de seu esforço para obter reconhecimento oficial da
Associação Psicanalítica Internacional. Este era o momento do Seminário XI.
[ii] Ver Lacan (9) . O título Les noms du p ère foi
reformulado posteriormente, no não publi - cado Seminário XXI (1973-74), como
Les non-dupes errent .
[iii] Ver Miller. (19) Este é o melhor volume em inglês para
entender a preocupação específica da qual se ocupava Lacan nesse seminário e,
especialmente, o conceito de “pulsão”.
[iv] Para algumas observações sobre o seminário da angústia,
ver Weber, (31, pp. 152-67)
[v] Para um sumário mais amplo da relação entre Lacan e
Merleau-Ponty durante os trinta anos nos quais um lê e comenta o trabalho do
outro (começando com suas participações nas leituras de Kojève), ver Phillips
21.
[vi] As citações das obras de Lacan e Merleau-Ponty foram
traduzidas da edição francesa. Indicamos por isso duas paginações, assim como
Shepherdson o fez: primeiro da edição francesa e outra, da americana. Quanto a
Les relations avec autrui chez l’enfant in Parcours (14) e L’Oeil et l’Esprit
(15), o autor preferiu indicar apenas pela paginação americana. Seguimos a
edição da Cynara/Verdier (1988) e da Gallimard (2004) respec) respectivamente. As
outras edições francesas, nós seguimos as indicadas pelo próprio autor nas
referências bibliográficas. Shepherdson ainda acrescenta em nota uma indicação
para se buscar tanto os títulos originais franceses das obras de Lacan como
informações adicionais de seu background no trabalho de Marini 13. N.T.
[vii] Esta questão pode ser caracterizada em termos da
distinção entre “alienação” e “separação” que Lacan apresenta explicitamente
como um novo desenvolvimento em seu pensamento (ver Laurent 12).
[viii]
Essa mudança para uma nova concepção do “real”,
que leva Lacan a questionar os limites do conceito do sujeito “simbólico”, tem
sido datada em vários momentos de seu trabalho. Jacques-Alain Miller localiza
esse momento entre os Seminários VII e VIII, do seminário d’A ética da
psicanálise (L’éthique de la psychanalyse) ao d’A transferência (Le transfert)
(ver Miller 20). Nestor Braunstein data isto um pouco antes, aproximadamente em
1958(ver Braunstein, 1). Philippe Julien data num momento posterior: “de 1964
em diante, Lacan distanciou-se do período da década de cinqüenta. Cada vez mais
ele veio duvidar do poder criativo da fala, declarando finalmente em 1980 que
este inexistia” (Julien 6, p. 63) E novamente: “Tal se deu quando Lacan dava
aulas sobre a transferência e o término da análise, em 1960-1. Notemos que tudo
depende da precisa relação entre a dimensão simbólica e imaginária. E o real?
Lacan usou o termo até 1953 mas sem ainda ter introduzido o real tal como
naquelas aulas. Ele fez isto em 1964” (ibid., p. 102).
[ix] Poder-se-ia reconhecer que este desenvolvimento no
conceito do sujeito também se vincula a um re-pensamento substancial da
categoria do real como Julien (6) e outros demonstraram. Se nos primeiros
trabalhos é possível dizer que o real é “pleno” e que “nada está faltando no
real”, o trabalho posterior não irá sustentar tal concepção: o status “traumático”
do real, sua conexão com o “impossível” e com o que está “faltando” no campo de
representação, deve agora ser entendido como um efeito da representação. Se os
primeiros trabalhos consideravam o real como um domínio “pré-lingüístico” da
existência que nunca é capturado adequadamente pela representação imaginária e
simbólica, um domínio de “imediaticidade” que se perde sempre que é mediado por
representação, no trabalho posterior, ele se apresenta a nós com uma mudança
abrupta: o real só pode ser entendido num modo “pós-simbólico”, não como uma
realidade pré-simbólica “plena” que foge da representação, mas como “falta” que
emerge como o efeito excessivo da representação, um “produto” peculiar que não
pode ser entendido em termos de uma concepção pré-simbólica do real. É por isso
que os seus trabalhos posteriores desenvolvem uma série de elos entre o real, a
jouissance e o objeto a – não como referência a um domínio pré-linguístico, mas
precisamente como um esforço para agarrar as consequências corpóreas da
insuficiência da lei simbólica. Para mais observações, ver Shepherdson, 27.
[x] Alphonso Lingis nos lembra que o interesse de
Merleau-Ponty na linguagem jamais era realmente limitado à perspectiva da
linguística estrutural, mesmo que isto complicasse seu primeiro trabalho sobre
a Gestalt introduzindo um nível novo de estrutura. Assim como na Fenomenologia
da percepção (Phénoménologie de la perception) Merleau-Ponty já focalizava não
a linguagem que é discutida pela linguística – aquele objeto da ciência lingüística
que pode revelar um conjunto de regras formais – mas antes a linguagem
“operativa” da vida, a linguagem como é de fato usada (mesmo pelos linguistas);
então era sempre, quando chegou no problema da linguagem, uma questão de
descobrimento da “lógica” evidente na língua atual, e que poderia ser
estabelecida num “nível” diferente do esquema formal que se poderia elaborar na
base do comportamento perceptivomotor. Ver o prefácio do tradutor d’O visível e
o invisível [no caso, The visible and the invisible], pp. xl-lxi, lii-liii.
[xi] Sobre a questão do alcance pela qual o trabalho de
Merleau-Ponty seja propriamente dialético em vários momentos, ver Terminiax
(27).
[xii] Como Foucault diz: “Um papel tão complexo, tão
sobredeterminado e tão necessário tem sido realizado no pensamento moderno por
uma análise do vivido. O vivido, com efeito, é ao mesmo tempo o espaço onde
todos os conteúdos empíricos são dados à experiência, e é também a forma
originária que os torna em geral possíveis e designa seu enraizamento primeiro;
ele estabelece, na verdade, comunicação do espaço do corpo com o tempo da
cultura, das determinações da natureza com o peso da história, na condição,
entretanto, que o corpo, e através dele a natureza, sejam primeiramente dados
na experiência de uma espacialidade irredutível, e que a cultura, portadora da
história, seja primeiramente experimentada na imediaticidade das significações
sedimentadas” (Foucault 4, p.321).
[xiii]
Dado esse “ser-olhado-por” primário e radical que
Merleau-Ponty nos leva a considerar, pode-se também pensar no problema da
“síntese passiva” e “constituição passiva” de que Husserl se ocupou em seus
últimos trabalhos (ver Landgrebe, The Problem...,pp. 50-65; The World as...,
pp. 122-48). Lacan também comenta esta aparente passividade. Ver Lacan 8, onde
ele nota que a “passividade” aparente desse “estar-sendo-visto”, sendo um ser
que é “olhado no espetáculo do mundo”, é de fato precisamente a atividade da
pulsão: “mesmo na sua pretensa fase passiva, o exercício de uma pulsão, masoquista,
por exemplo, exige que o masoquista se dê, se ouso me exprimir assim, um
trabalho de cão” (Lacan 8, p. 182/200).
[xiv] Em suas Notas de trabalho (Notes de travail),
Merleau-Ponty destaca que devemos “fazer não uma psicanálise existencial, mas
uma psicanálise ontológica” (18, p. 323/270) e acrescenta que “a filosofia de
Freud não é uma filosofia do corpo mas da carne”. E ainda: “Uma filoso- fia da
carne é condição sem a qual a psicanálise permanece antropologia” (18, p.
321/267).
[xv] Pode-se comparar aqui a leitura lacaniana d’O visível e
o invisível com a de Luce Irigary (5 pp. 143-71, pp. 151-84).
[xvi] Como é bem conhecido, Merleau-Ponty diz que o conceito
de “carne” que ele introduz n’O visível e o invisível requer um retorno ao
antigo elemento primordial do mundo. “A carne não é matéria, não é espírito,
não é substância. Precisar-se-ia, para designá-la, do velho termo ‘elemento’,
no sentido que se empregava para falar de água, ar, terra e fogo (...). A carne
é, neste sentido, um ‘elemento’ do Ser” (Merleau Ponty 18, p. 184/139)
IN: Dossiê Filosofia e Psicanálise
www.filosofia.fflch.usp.br
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