segunda-feira, maio 16, 2016

Hannah Arendt: Soberania e Poder


Soberania e poder em Sobre a Revolução de Hannah Arendt

Renata Romolo Brito

Pretendo analisar, neste artigo, a noção de abolição da soberania que Arendt propõe no capítulo 4 de Sobre a Revolução. Antes de analisar essa afirmação, entretanto, cabe lembrar que Arendt pensa o princípio da soberania juntamente com a noção de Estado-nação, e uma de suas primeiras reflexões sobre o assunto se iniciou em Origens do Totalitarismo, em que o princípio da soberania é analisado em conjunto com o fenômeno da apatridia. Foi a situação problemática do vácuo de legalidade que recaiu sobre o apátrida que a levou a elaborar a importante noção do direito a ter direitos, e esse vácuo é devido diretamente ao exercício da soberania plena pelos Estados-nações. Voltando então a essas reflexões, argumento que não podemos compreender a noção de abolição da soberania e a crítica arendtiana a esse princípio de forma dissociada de sua crítica ao nacionalismo e aos direitos humanos, e em resposta ao artigo “Banishing the Sovereign? Internal and External Sovereignty in Arendt”, de Cohen e Arato, pretendo mostrar que, antes de abolir o soberano, Arendt pretende repensar criticamente essa noção à luz de um novo conceito de poder.

A crítica arendtiana à noção tradicional de direitos humanos é construída em duas etapas. O primeiro argumento de Arendt é que a ideia de Homem, ou de uma natureza humana que fundamentaria esses direitos, é uma abstração que contraria a realidade da existência humana na Terra, isto é, o fato de que os homens existem de forma plural. Tal abstração nega a condição essencial da política, isto é, a pluralidade.

Seu segundo argumento, também vinculado ao primeiro, está ligado à ineficácia prática desses direitos no momento em que uma pessoa perdia a proteção de um Estado e não encontrava mais nenhum outro Estado disposto a acolhê-la, tal como ocorreu com um imenso número de pessoas no início do século passado. Essa situação era causada diretamente pela ação dos Estados-nações, e revelava, de acordo com Arendt, um problema intrínseco na organização política desses Estados, evidenciando um problema subjacente ao próprio sistema de Estados-nações e seu ideal de soberania. Em outras palavras, a dinâmica de se unir os direitos do cidadão aos direitos do nacional, estabelecendo-se por meio de uma ideologia excludente de nacionalismo, gerou a perda da cidadania em um sistema que não tinha recursos para remediar essa situação – visto que, de acordo com a ordem internacional, a perda do status legal em um Estado significava também sua perda em todos os outros países.

Assim, os Estados-nações, ao exercerem suas prerrogativas soberanas, geraram o fenômeno da apatridia. O que eles fizeram, segundo Arendt, foi passar a reconhecer como cidadãos apenas os “nacionais” e a proteger unicamente os interesses da nação, retirando da proteção das leis e dos direitos civis parte de seus habitantes. Fora da estrutura estatal, o apátrida se encontrava em um completo vácuo de legalidade, e os direitos humanos, idealizados para evitar tal vácuo, simplesmente não existiam. Na prática, portanto, os direitos humanos só podiam ser aplicados como direitos civis, o que significava direitos dos nacionais. E por causa da ideologia nacionalista e da consequente corrupção do Estado pela nação, vários grupos foram excluídos da proteção do direito apenas pelo fato de serem diferentes ou terem perspectiva diversa da dominante.

Em função do colapso do sistema estatal europeu e das desnacionalizações em massa, Arendt reconheceu que a soberania (entendida como soberania nacional) só havia sido possível no passado enquanto existiu um espírito de solidariedade (ainda que desorganizado) que mantinha a validade dos acordos entre os Estados – os dissuadindo de exercer por completo seu poder soberano. Os direitos humanos, pensados tradicionalmente, não eram suficientes para proteger os cidadãos de qualquer Estado. Em vista disso, Arendt defendeu que o primeiro e único direito humano é o direito a pertencer a algum corpo político, quer dizer, o direito a ter direitos e a ter uma personalidade legal – o que importa na possibilidade de participar na esfera pública e ter sua voz ouvida pelos demais. Isso revela que os direitos, quaisquer que sejam, só possuem sentido dentro de um Estado e em âmbitos de participação e reflexão políticas.

No entanto, Arendt está ciente de que mesmo o Estado que não fora tomado pela ideologia nacionalista possuía prerrogativas soberanas idênticas em relação à definição da cidadania, e a mesma capacidade de negar proteção a determinados indivíduos. A arbitrariedade dos atos de fundação e do estabelecimento de limites territoriais, que vão traçar os limites de quem possui e quem não possui cidadania, é um problema estrutural intrínseco ao Estado soberano circunscrito. A questão se volta, consequentemente, para os limites do poder do Estado, isto é, para o conceito de soberania, já que são os atos soberanos do Estado que definem o pertencimento de seus indivíduos.

A soberania exercida de forma plena, no pensamento arendtiano, é associada ao ideal da autossuficiência e do autodomínio. Arendt faz uma distinção entre os conceitos de livre-arbítrio e liberdade, afirmando que são fenômenos distintos e que apenas a liberdade se relaciona com a pluralidade e com a política. Ela destaca ainda que foi o livre-arbítrio, ao ser tomado como modelo para a reflexão sobre a liberdade, que trouxe como ideal para o espaço público uma forma de se entender o “ser livre” relacionada com a soberania, anulando a pluralidade e isolando os homens. Para Arendt, a liberdade significa trazer a existência algo que antes não existia, significa iniciar algo novo; relaciona-se, portanto, com a ação, com o mundo e com a pluralidade. Já o livre-arbítrio relaciona-se com a vontade, sendo derivativo da liberdade mundana. Arendt afirma que, no momento em que o homem não pode mais ser livre no mundo, e isso significa que não possui mais liberdade de ir e vir, liberdade de opinião e possibilidade de agir no espaço público, o homem volta-se para sua interioridade em uma busca de sentir-se livre, refugiando-se nas faculdades do pensamento e da vontade. Nessa fuga do mundo para o interior, a liberdade passa a ser associada à vontade e começa a ser entendida como livre-arbítrio, que significa uma liberdade de escolha que arbitra e decide entre duas opções já dadas. Essa escolha não exprime a liberdade de começar algo novo, mas apenas a preferência entre uma ou outra coisa, sendo soberana quando essa preferência não é contestada ou quando é bem sucedida em eliminar quaisquer obstáculos para sua realização. Porque a liberdade política foi identificada à noção de livre-arbítrio, o ideal da liberdade no mundo passou a ser a soberania e não mais o virtuosismo ou a excelência da ação, o que trouxe para a política um modelo da independência ou autossuficiência. O homem ou o Estado livres passam a ser aqueles que independem dos demais e que eventualmente prevalecem sobre eles, sendo capazes de realizar sua vontade. Em função disso, Arendt defende que a liberdade, enquanto relacionada com a política e com a pluralidade, não é um fenômeno da vontade, e que soberania e liberdade são, de fato, incompatíveis. Para ela, a soberania significa a imposição de uma vontade a todos os demais e, portanto, a eliminação da autonomia e da liberdade desses. Com uma noção de soberania baseada na faculdade da vontade, que emite comandos que devem ser obedecidos e que não deixa espaço para persuasão e contestação, Arendt se coloca inclusive contra a noção de soberania popular, entendida ainda de acordo com o modelo absolutista europeu, isto é, como o dogma de um poder centralizado e unitário sendo exercido pela imagem fictícia de um povo compreendido como uma nação indivisa que é anterior e superior a todas as leis.

Em seu artigo “Banishing the Sovereign? Internal and External Sovereignty in Arendt”, Cohen e Arato afirmam que o entendimento arendtiano em relação ao conceito de soberania limita sua reflexão e a leva a uma conclusão que se restringe a uma separação (não cabível) entre soberania interna e externa. Na verdade, eles argumentam que Arendt propõe a abolição da soberania interna, enquanto afirma ainda a conservação da soberania externa, o que manteria intocado o problema estrutural que gerou o fenômeno dos apátridas e também não resolveria as questões internas de organização do corpo político.

Em relação à soberania interna, Cohen e Arato citam a afirmação de Arendt, em Sobre a Revolução, de que a grande inovação da política americana, especialmente a longo prazo, foi a consistente abolição da soberania dentro do corpo político da república, além da compreensão de que soberania e tirania significam o mesmo no espaço público. Essa abolição teria sido conseguida através de instituições constitucionalistas e federativas, tais como o domínio da lei e a repartição de poderes. Para Arendt, afirmam esses autores, soberania é uma reivindicação de controle e domínio, exprimindo supremacia jurisdicional de uma única instância política sobre um território, e é construída ainda como uma afirmação da vontade de um soberano que se coloca acima da lei, não havendo diferenças se esse comandante é um único homem, um órgão do governo ou o povo imaginado como uma única entidade. Estando acima das leis, a vontade do soberano é a própria fonte de legitimidade delas e, ao mesmo tempo, não se encontra limitada por elas, sendo, consequentemente, arbitrária. Tendo como ideal uma vontade desobstruída, essa noção de soberania tem um discurso completamente antipolítico. Enquanto a liberdade é concebida como agir em conjunto com seus pares, a soberania e o livre-arbítrio são concebidos como comando de um sobre os demais. Tal distinção é correlata à distinção entre as noções de política e soberania, as quais são compreendidas como completamente opostas. A soberania é concebida, portanto, como monológica, isoladora, voluntarística e hierarquizadora, obstando a liberdade, a deliberação e o diálogo.

Cohen e Arato, no referido artigo, ainda enfatizam que, de acordo com o entendimento arendtiano dessa noção, a soberania se tornaria antitética ao próprio Estado de Direito, à existência do sistema de pesos e contrapesos, à cidadania igualitária e ao constitucionalismo, representando, factualmente, uma ditadura. Eles acrescentam ainda que Arendt também relaciona a soberania irrevogavelmente a um entendimento contrário ao sistema representativo, porque a soberania é vinculada ao órgão de representantes que personifica o governo e usurpa o espaço político. Visto que a característica central do entendimento arendtiano da noção de soberania se mantém intacta em suas várias formas – quer dizer, a característica de uma vontade irrestrita, acima de lei e como fonte desta, se encontra tanto na noção de soberania monárquica quanto na soberania popular – Arendt apontaria as mesmas falhas para ambos os modelos de soberania (e, conformemente, para o sistema representativo). Para a substituição da soberania monárquica pela soberania popular, as noções de absoluto e único, antes associadas ao monarca, são agora transferidas para o ideal do povo, o que propiciaria a incompatibilidade com o constitucionalismo, além de manter a exclusão do povo em relação ao espaço público. Consequentemente, Arendt pretenderia, de acordo com os autores, eliminar o discurso da soberania como um todo e deixar o lugar do soberano vazio. O que, entretanto, não a impediria de afirmar a soberania externa, já que a aparência de unidade diante dos outros Estados não elimina o espaço público interno, onde os cidadãos podem participar e deliberar a fim de chegar a decisões conjuntas. Cohen e Arato afirmam também que um segundo motivo para que Arendt não critique a soberania externa da mesma forma como o faz com a soberania interna é que a noção arendtiana de relações internacionais não se enquadra dentro de seu conceito estrito de política. Conforme esses autores, portanto, a crítica arendtiana à soberania resultaria apenas na tentativa de cindir as noções de soberania interna e externa, o que permitiria a existência de política internamente, mas manteria um cenário político internacional intocado, ou seja, incapaz de lidar com o problema do apátrida.

Considerando a análise arendtiana em relação à situação dos apátridas, Cohen e Arato reconhecem que Arendt tocou em pontos relevantes no que diz respeito à soberania externa, especialmente em função da conclusão contundente do volume sobre o imperialismo, em Origens do Totalitarismo, que demonstra como o exercício absoluto da soberania pelo sistema de Estados-nações não só gerou o fenômeno da ausência de legalidade, como contribuiu para privar internamente cidadãos de seus direitos básicos. A relação entre soberania interna e externa não pode ser simplesmente cindida, e mesmo na América, onde Arendt afirma que a soberania interna foi abolida, o risco para os direitos civis e a personalidade legal dos cidadãos em momentos de crise é grande quando não há limitações para sua soberania externa. Por isso, Cohen e Arato argumentam que, embora Arendt não tenha explicitamente se dedicado ao assunto, ela percebia a ligação entre as duas noções de soberania. Eles afirmam ainda que, externamente, não há diferenças entre repúblicas federativas e Estados-nações, porque ambos são Estados territoriais igualmente soberanos em assuntos de imigração, naturalização, nacionalidade, expulsão e política externa. Dessa forma, a análise arendtiana do efeito boomerang durante o movimento imperialista do século XIX aplica-se inteiramente a repúblicas federativas atuais, e ela estava certa em defender a necessidade de abandonar os ideais de um Estado-nação homogêneo e da soberania como uma prerrogativa discricionária de uma vontade ilimitada, absoluta e acima das leis. O problema se encerra, para Cohen e Arato, no fato de que Arendt teria proposto a abolição da soberania interna e terminado assim sua reflexão. Aceitando as críticas arendtianas à noção de soberania, Cohen e Arato propõem que, ao invés de abandonar esse conceito, ele precisa ser, pace Arendt, repensado e transformado para se adequar aos Estados atuais. Eles defendem ainda que sua abolição, não importa em que âmbito, é impossível, visto que mesmo repúblicas federativas precisam da noção de soberania interna para que suas instituições funcionem. Eles argumentam que o pensamento arendtiano fornece ferramentas para essa reconfiguração conceitual, no entanto, para eles, Arendt não teria seguido por essa direção ao manter-se presa à noção absoluta de soberania e fixada na ideia de simplesmente abandonar esse conceito por inteiro.

De acordo com a ideia de transformar e não abolir o conceito de soberania do discurso político, Cohen e Arato observam que soberania, como instituição e como discurso, não precisa ser entendida de uma forma única e absoluta, sendo irrevogavelmente uma noção dupla que envolve uma relação entre lei e poder, entre política o domínio, vontade e razão, fato e norma, legitimidade e legalidade, unidade e pluralidade, e, como as demais noções políticas, pode ser contestada e reconfigurada no processo político. Gostaria de sugerir que essa tese de Cohen e Arato, de reconfigurar conceitualmente da noção de soberania, já se encontra na obra arendtiana. Em Sobre a Revolução, Arendt apresenta uma noção de lei como acordo ou de lei como o estabelecimento de conexões e relações através de alianças e tratados. Essa ideia de que a lei estabelece conexões entre os agentes, que vincula-os e estabelece compromissos entre eles, pode ser estendida para o domínio internacional e funcionar como um meio de limitar a soberania e estabelecer os princípios de um sistema político internacional. Em A Condição Humana, Arendt textualmente indica essa via, afirmando que:

A soberania, que sempre é espúria quando reivindicada por uma entidade única e isolada, quer seja a entidade individual da pessoa ou a entidade coletiva da nação, passa a ter certa realidade limitada quando muitos homens se obrigam mutuamente através de promessas. A soberania reside numa limitada independência em relação à impossibilidade de calcular o futuro, e seus limites são os mesmos limites inerentes à própria faculdade de fazer e cumprir promessas. A soberania de um grupo de pessoas cuja união é mantida, não por uma vontade idêntica que, por um passe de mágica, as inspirasse a todas, mas por um propósito com o qual concordaram e somente em relação ao qual as promessas são válidas e tem o poder de obrigar, fica bem clara por sua inconteste superioridade em relação à soberania daqueles que são inteiramente livres, isentos de quaisquer promessas e desobrigados de qualquer propósitos.

Essa noção de soberania limitada, com base na ação, oferece um princípio para que se repense esse conceito, ainda dentro da filosofia arendtiana. De fato, os ideais de homogeneidade e arbitrariedade são abolidos em favor da pluralidade e da ação política. Cohen e Arato entendem de forma absoluta a dicotomia arendtiana entre política e soberania (e entre relações de liberdade e relações de comando, isonomia e domínio), o que reduz a soberania à arbitrariedade e à ilegalidade irreversivelmente. É verdade que essa dicotomia aparece por vezes na obra arendtiana de forma aparentemente conclusiva, o que acaba por obscurecer a possibilidade de repensar a institucionalização de uma soberania limitada e de um regime internacional de garantia aos direitos humanos; no entanto, por meio da ação, é justamente essa a possibilidade política que Arendt propõe.

É necessário, por isso, analisar até que ponto a afirmação arendtiana de que a Revolução Americana aboliu a soberania interna implica a conclusão de Cohen e Arato de que o lugar do soberano, para Arendt, deve ficar vazio. Ao opor soberania e política, Arendt tem em mente um conceito bastante específico de soberania.

Arendt traça filosoficamente esse conceito ao relacioná-lo com a faculdade da vontade e com o livre-arbítrio, e o define como o ideal da autossuficiência (em direta oposição ao ideal da liberdade política, que existe na pluralidade). Política e historicamente, Arendt relaciona a noção de soberania com a experiência dos Estados-nações europeus. No prólogo de Responsabilidade e Julgamento, Arendt menciona, em uma nota biográfica, a diferença que sentiu ao adentrar o corpo político americano e o que deixava para trás na Europa. Enquanto os Estados-nações europeus possuíam populações homogêneas, com um senso orgânico de história, divididos mais ou menos decisivamente em classes sociais e guiados por um ideal de soberania nacional que se apresentava como raison d’etat, o que culminava na ideia de que, quando necessário, a diversidade deveria ser sacrificada pela union sacrée da nação, os Estados Unidos possuíam um ideal civil de pertencimento e cidadania, o que permitiu a Arendt adquirir cidadania sem precisar pagar o preço da assimilação. O princípio da soberania que Arendt critica, e que aponta como ideal regulador do sistema dos Estados-nações cujo colapso causou o fenômeno da apatridia, está sempre politicamente acompanhado da característica fundamental do Estado-nação, qual seja, a homogeneidade, que implica uma noção de poder indivisível exercido por um único ente (nesse caso: a nação). É a homogeneidade étnica da nação que dá um caráter natural e definitivo à identidade coletiva que toma conta do corpo político, resultando não apenas no nacionalismo, mas também no racismo e no antagonismo diante de outros povos. Consequentemente, essas características – de homogeneidade natural, antagonismo diante do outro, indivisibilidade do poder, independência nacional, existência autárquica – todas elas são incorporadas em sua forma máxima na figura do Estado-nação regido pelo princípio da soberania, e portanto, não podem ser dissociadas da crítica arendtiana a esse princípio.

A soberania é, para Arendt, tanto filosófica, quanto politicamente (em seu modelo tradicional) monológica, relacionada à realidade ou à ficção de um único arbítrio, o que importa em uma noção de poder necessariamente indivisível. Em “On the Nature of Totalitarianism: An Essay in Understanding”, Arendt se volta para a questão da natureza do governo, e aponta que Montesquieu, embora tenha articulado a noção de divisão de poderes, ainda definia erroneamente os governos como se o poder fosse necessariamente soberano e indivisível. Arendt afirma que foi Kant, em A Paz Perpétua, quem introduziu a divisão correta entre formas de dominação e formas de governo. Para o filósofo, as formas de dominação são distinguidas unicamente pelo locus de poder indivisível: nos Estados em que o príncipe possui o poder soberano, existe uma autocracia; nos Estados em que a nobreza possui esse poder, existe uma aristocracia; e quando é o povo que exerce o poder absoluto, a dominação tem o nome de democracia. Arendt enfatiza que o objetivo kantiano com essa divisão é que todas essas formas de governo são estritamente ilegais, pois todas são, fundamentalmente, dominação. O governo só pode ser constitucional e legal quando estabelecido por meio de uma divisão de poderes, em que o mesmo corpo, órgão ou pessoa não acumula as funções legislativas, executivas e judiciárias. O governo constitucional, legal e legítimo, portanto, se distingue do governo despótico pela separação de poderes. O que é importante retermos aqui é a associação que Arendt faz entre o conceito de soberania a noção de indivisibilidade do poder, que precisa ser exercido por um único ente, o soberano, seja esse soberano um tirano ou a ficção do povo ou da nação como uma entidade homogênea.

Tendo essa noção de soberania em mente, fica clara a afirmação arendtiana de que, nos Estados Unidos, a soberania foi abolida internamente por meio do estabelecimento de uma divisão de poderes. O que Arendt opõe com a distinção entre as noções de soberania e política são as noções de dominação (ou de poder indivisível) e de poder legitimamente constituído.

O contexto em que ela traz a ideia de abolição da soberania em Sobre a Revolução é o problema da constituição do poder. Analisando o caso específico da fundação do corpo político americano, Arendt também defende um novo conceito de poder (o poder que emerge da ação em conjunto) contra a noção tradicional de que poder é dominação e controle, e que diminui se dividido. Ela inicia sua argumentação da seguinte forma:

O poder só pode ser refreado e ainda continuar intacto pelo poder, de forma que o princípio da separação do poder não só fornece uma garantia contra a monopolização do poder por uma parte do governo como também oferece efetivamente uma espécie de mecanismo, embutido no próprio núcleo interno do governo, que gera constantemente um novo poder, que, porém, não é capaz de crescer e se expandir em prejuízo de outros centros ou fontes de poder. (...)
Esse aspecto da questão geralmente é deixado de lado porque pensamos a divisão do poder apenas em termos de sua separação nos três ramos do governo. Mas o problema principal dos fundadores era como estabelecer a União a partir de treze repúblicas “soberanas”, devidamente constituídas; a tarefa deles era fundar uma “república confederada” que – na linguagem da época, tomada a Montesquieu – reconciliasse as vantagens da monarquia nos assuntos estrangeiros e as vantagens do republicanismo na política interna. E aqui, nesta tarefa da Constituição, não se tratava mais de constitucionalismo no sentido dos direitos civis – mesmo que então tivesse se incorporado à Constituição uma Declaração de Direitos sob a forma de emendas, como complemento necessário a ela –, e sim de criar um sistema de poderes que se refreassem e se equilibrassem de tal forma que nem o poder da União nem o poder de suas partes, os estados devidamente constituídos, viessem a de diminuir ou se destruir mutuamente.

 O que Arendt aponta, nesse exemplo de fundação, é precisamente a necessidade de uma noção de poder que é compartilhado pelas partes e que cresce pela ação em conjunto de suas partes, isto é, um poder político que emerge da ação, e não o controle de uma parte por outra. Ela continua:

No plano da prática e da formação de instituições, convém examinar o argumento de Madison sobre a proporção e o equilíbrio do poder entre o governo federal e os governos estaduais. Se ele acreditasse nas noções correntes da indivisibilidade do poder – que poder dividido é menos poder –, teria concluído que o novo poder da União teria de se fundar em poderes cedidos pelos estados, e, assim, quanto mais forte ela fosse, mais fracas ficariam suas partes constituintes. Mas seu argumento era que o próprio estabelecimento da União havia fundado uma nova fonte de poder, que não extraía de maneira nenhuma sua força dos poderes dos estados, na medida em que não havia se estabelecido às expensas deles. (...) Neste aspecto, a grande – e a longo prazo talvez a maior – inovação americana na política como tal foi a abolição sistemática da soberania dentro do corpo político da república, a percepção de que, na esfera dos assuntos humanos, soberania e tirania se equivalem.

Porque Arendt trata de duas concepções diferentes de poder – a tradicional, vinculada à soberania, em que poder é indivisível e que se constitui assumindo o poder, ou controle, de todas as outras partes, e a noção de poder político gerado pela ação em conjunto – ela pode afirmar que a soberania foi abolida. Com efeito, é a concepção monológica de poder soberano o que foi abolido. Isso não significa, como afirmam Cohen e Arato, que Arendt pretende deixar o lugar do soberano vazio, e sim que o corpo político precisa se organizar em torno do estabelecimento de um novo conceito de poder, gerado legitimamente pela ação. Arendt conclui: “É evidente que o verdadeiro objetivo da Constituição americana não era limitar o poder, mas criar mais poder, de fato criar e constituir devidamente um centro de poder inteiramente novo (...)”. Apontando mais uma diferença entre a Revolução Francesa e a Revolução Americana, entre os Estados-nações europeus e o corpo político sendo formado no novo continente, Arendt revela que o alvo de sua crítica é a noção de soberania que legitima a dominação por meio de práticas antidemocráticas, afirmando que os revolucionários americanos “não estavam pensando em termos de uma ficção e de um absoluto, a nação acima de qualquer autoridade e absolvida de todas as leis, e sim em termos de uma realidade existente, a multidão organizada cujo poder era exercido de acordo com as leis e limitado pelas leis.”

A questão se volta, consequentemente, para a possibilidade de agir e participar do corpo político de que se faz parte. A ficção da soberania popular, em que o povo ou a nação ocupa o lugar antes do príncipe, não altera em nada a noção de poder como dominação. E juntamente com a ideologia do nacionalismo, seja na forma do Estado-nação ou no ideal da soberania popular, permanecem as características da homogeneidade, arbitrariedade, separatismo e agressividade que Arendt tão bem apontou ao tratar do problema dos apátridas e das minorias étnicas gerados pela atuação de Estados-nações soberanos.

Não é possível dissociar a crítica arendtiana aos direitos humanos das questões de nacionalismo e soberania, e a conclusão a que Arendt nos leva com a noção de direito a ter direitos, isto é, que qualquer direito tem sentido apenas em âmbitos políticos de reflexão e discussão, tem de ser estendida também àquelas questões. Não existem ideais políticos que não precisem ser contestados, repensados, reconfigurados e ressignificados em cada novo corpo político, porque apenas assim eles podem ser assimilados e aceitos pelos membros da comunidade como seus próprios ideais. Qualquer princípio, por mais revolucionário que tenha sido seu surgimento em um determinado momento político ou na história das ideias, precisa ser continuamente analisado e refletido em ambientes de diversidade e discussão para ter relevância e significado dentro de contextos políticos específicos e em comunidades reais. Ao apontar a tensão entre os direitos humanos e o princípio da soberania, Arendt revela a necessidade de repensar criticamente essas questões – de trazê-las para processos políticos contextualizados em que seu significado possa ser comunicativamente estabelecido pelos cidadãos – juntamente a um grave alerta em relação aos problemas criados pela maneira pela qual eles foram pensados no passado.

É importante notar que Habermas, em A inclusão do outro, ao tratar da questão de se o Estado nacional tem futuro, observa a relação entre o conceito de democracia e o conceito de soberania. Segundo ele, as visões substancialistas e procedimentalistas da democracia conduzem a conceitos bastante distintos de autodeterminação nacional, multiculturalismo, e consequentemente, de soberania do Estado. Uma visão substancialista de democracia, que entende por autodeterminação democrática a autoafirmação e a autorrealização coletivas de membros homogêneos ou participantes de uma mesma comunidade, traz consigo uma noção de soberania cujo aspecto relevante é a soberania exterior. A manutenção de poder do Estado dentro do sistema internacional é o que garante a identidade da nação diante das demais, e, internamente, a soberania não precisa ir além da imposição eficiente da ordem jurídica do Estado aos seus cidadãos e residentes. Já uma noção procedimentalista de democracia implica a participação de cidadãos livres e iguais nos processos de tomada de decisão, e isso traz consigo uma noção de soberania vinculada ao fundamento democrático de legitimação do poder. Internamente, não basta paz, ordem ou identidade coletiva para legitimar o Estado, mas sim procedimentos de participação democrática abertos a todos. Essa distinção habermasiana entre concepções de soberania esclarece ainda mais o contexto da afirmação arendtiana de que a soberania foi abolida. A noção de que basta ao Estado impor ordem e paz a um corpo político homogêneo é contraposta, por Arendt, à necessidade de afirmar um conceito de poder que se legitima por meio de processos de participação democrática. Trata-se da própria legitimidade do poder, que, para Arendt, é agir em concerto, por meio do discurso, junto a co-cidadãos.

O desenho de um panorama internacional composto de corpos políticos que se consideram autossuficientes e independentes, cujas relações se baseiam primeiramente na força e não na cooperação, é de fato um enorme obstáculo para a noção de que todo homem deve possuir cidadania, porque espaços em que não existe legalidade são uma possibilidade sempre presente em tal estrutura. Entretanto, a possibilidade de contestar e reconfigurar os princípios e as normas segundo os quais se vive é o espírito mesmo da política defendida por Arendt, e a reflexão em relação à noção de soberania e à noção de Estado são essenciais para que uma comunidade política seja estabelecida legitimamente. Essa possibilidade, como vimos, se dá por meio da ação. Apenas agindo, e mais, agindo em conjunto, é que os homens podem reconfigurar e restabelecer os princípios do espaço público e chegar a acordos que de fato garantem de forma mais ampla o direito a ter direitos. Em outras palavras, os problemas impostos pela noção absolutista de soberania vinculam-se a uma noção de poder entendido como força e dominação, e a forma de encontrar uma solução para esses problemas está na noção de poder comunicativo que se desenvolve em processos democráticos.

É importante ressaltar o papel que a lei toma no pensamento arendtiano, visto que o contexto legal é o próprio meio pelo qual a política e a liberdade são possíveis. A personalidade jurídica e os direitos gozados pelos cidadãos são os meios pelos quais o espaço público pode se organizar e a liberdade pode vir à tona. Sendo intrínsecamente vinculado à política, e consequentemente à condição humana da pluralidade, o direito a ter direitos salienta, dessa forma, a necessidade política fundamental de estender esse contexto de forma a garantir a proteção e a participação política de todos os homens. Da mesma forma, a crítica arendtiana aos ideais da soberania e do nacionalismo mostram a necessidade essencial da constituição legítima do poder em processos comunicativos e democráticos de participação dos cidadãos no espaço público, em que todas as concepções e os ideais políticos podem ser contestados, repensados, reconfigurados e ressignificados.

Referências
ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1979. _________. Origens do Totalitarismo. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. _________. A Vida do Espírito. Tradução de Antônio Abranches e Helena Martins. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.
 _________. A Condição Humana. 10 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. _________. Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. _________. Essays in Understanding. New York: Schocken Books, 2005.
 __________. Compreender. Formação, exílio e totalitarismo. Tradução de Denise Bottman. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.
 _________. Sobre a Revolução. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
BENHABIB, S. Political Geographies in a Global World: Arendtian Reflections. Social Research, New York, vol. 69, n. 2, 2002, pp. 539-566. COHEN, J. The Self-Institution of Society and Representative Government: Can the Circle be Squared? Thesis Eleven. Londres, vol. 80, 2005, pp. 9-37.
COHEN, J.; ARATO, A. Banishing the Sovereign? Internal and External Sovereignty in Arendt. Constellations. Cambridge, vol. 16, n. 2, 2009, pp. 307-330.
HABERMAS, J. A inclusão do outro. São Paulo: Edições Loyola, 2002.


IN: Cadernos de Filosofia Alemã | jan.-jun. 2015

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