quinta-feira, maio 12, 2016

O Contemporâneo: De Agabem a Psicanálise


Sexual: o contemporâneo da psicanálise Sexual:
Nina Virgínia de Araújo Leite
Paulo Sérgio de Souza Jr.
Universidade Estadual de Campinas, Unicamp Campinas, SP, Brasil

Caso se esteja de acordo com a leitura de Roland Barthes a respeito da posição nietzschiana ao longo das Unzeitgemässe Betrachtungen [Considerações extemporâneas, 1873-76], o contemporâneo se trata daquilo que é da ordem do intempestivo. Será, aliás, partindo dessa observação relevante que Giorgio Agamben, no ensaio intitulado “O que é o contemporâneo?”, arrolará formulações sobre a contemporaneidade em sua radical diferença com relação ao que seria do foro da atualidade, pressupondo que a primeira se situaria na pendência de um descompasso que a segunda, de certo modo, se empenharia em mitigar.

Esse descompasso – marca da impossibilidade de se estar em dia, de fato, com aquilo que terá sido o contemporâneo – parece caracterizá-lo de modo determinante, uma vez que aí estaria em cena “uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias”; e isso, por sua vez, faria com que ser contemporâneo equivalesse paradoxalmente a “ser pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar”.* Evocando Nietzsche, então, Agamben pensa aquilo que seria um pertencimento verdadeiro a seu tempo – pertencimento que podemos chamar de atualidade – como um obstáculo, com efeito, à possibilidade de ser contemporâneo, visto que a contemporaneidade implicaria precisamente uma não-coincidência do sujeito com sua época (um décalage hors-ère fundamental, por assim dizer).

Depreendemos ser essa tomada de posição bastante rica em consequências para além das elucubrações filosóficas, minimamente à medida que – se contemporâneo for aquele que for “capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente”* – isso coloca em jogo uma dimensão efetivamente prática do ser no mundo, e convoca um deslocamento do sujeito com relação ao tempo ao redor. Assim sendo, é suscitada de imediato a seguinte pergunta: se é o achado do inconsciente por Sigmund Freud que funda a psicanálise, e se, como dizia o próprio Freud,* os processos do sistema inconsciente não têm, justamente, nenhuma relação com o tempo [keine beziehung zur Zeit], haveria algo que, no campo da psicanálise como tal, se poderia chamar de contemporâneo?

O contemporâneo como o enigma do atual

“Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo” – Giorgio Agamben, O que é o contemporâneo?- 2008

Para sustentar a proposição central deste artigo – que afirma ser o sexual o contemporâneo (pela concepção de Agamben) na psicanálise e/ou a partir do discurso freudiano –, importa indicar, mesmo que brevemente, a especificidade do termo sexualidade em psicanalise, alinhando-o diretamente com a lógica do funcionamento do inconsciente, porque estruturado como linguagem. Ou seja, propomo-nos, aqui, a indicar em que o sexual deve ser pensado como referido ao campo da linguagem – e, por obedecer à lógica desta, implicar o enigma. O gesto freudiano de descoberta (ou invenção?) do inconsciente não apenas retirou o termo “sexualidade” de suas amarras com a genitalidade, mas o incluiu definitivamente no campo da linguagem. Lacan, já em 1953, advertia os psicanalistas quanto ao estatuto dos fatos colocados em jogo por Freud: trata-se sempre de fatos de linguagem. Ora, por que o sexual está ligado com a linguagem e em que isto contribui para a aproximação com a abordagem do contemporâneo proposta por Agamben?

Nada mais precioso nessa empreitada do que retornar ao texto de 1910 em que Freud* argumenta contra a psicanálise denominada “selvagem”, e aí recolher os fundamentos da aproximação da sexualidade com a linguagem. Lembremos que, muitos anos mais tarde, Lacan afirmará que o inconsciente é efeito de linguagem – e tal afirmação, transformada atualmente em aforismo, não deixou de resultar em um encobrimento da novidade da descoberta freudiana quanto ao sentido do sexual. Daí a necessidade de, mais uma vez, retornarmos ao texto freudiano.

Nesse pequeno texto, Freud analisa a conduta de um médico que, supostamente, estaria utilizando os princípios da técnica psicanalítica ao oferecer conselhos a uma paciente que o procura se queixando de crises de angústia, especialmente intensificadas depois de sua separação do marido. Tal médico teria afirmado que a causa de sua angústia residiria na privação sexual e que, não podendo prescindir do comércio sexual com um homem, a ela restariam apenas três caminhos para recuperar sua saúde: retornar ao marido, arranjar um amante ou satisfazer-se sozinha. Os diversos erros da conduta desse suposto analista servem de motivação para o esclarecimento de questões tanto técnicas quanto teóricas, no que respeita ao entendimento que o médico revela quanto à noção de sexualidade. Segundo Freud, os conselhos que o médico oferece à paciente evidenciam o sentido que ele atribui à “vida sexual”, não sendo outro que o popular, ou seja, na esteira de uma sinonímia entre sexualidade e ato sexual. O conceito do sexual é, em psicanálise, estendido muito além de seu alcance ordinário, afirma Freud. Mas o que significa essa extensão do conceito, uma vez que logo em seguida afirmará que tal gesto de extensão implica “ultrapassar o sentido popular tanto para baixo como para cima” (er geht nach unten wie nach oben über den populären Sinn hinaus)? Do que se trataria em uma extensão para mais e para menos do sentido popular?

Uma interessante observação de Shoshana Felman* permite avançarmos na análise desse aparente paradoxo. A autora parte do reconhecimento de que a relação entre a noção psicanalítica de sexualidade e o ato sexual não pode ser pensada como uma relação de adequação simples e literal, mas, ao invés disso, deve ser pensada como uma relação de inadequação. Isso apontaria para a complicação específica que é inerente à sexualidade humana como tal, conduzindo ao reconhecimento de uma complexa relação entre sexualidade e sentido; “uma relação que não é de simples desvio do sentido literal”, mas conduz a uma problematização da literalidade como tal.

O fato de implicar simultaneamente um aquém e um além do sentido popular imediatamente introduz o traço do contraditório como constitutivo do sentido em jogo no uso do termo “sexualidade” em psicanálise. E isso se evidencia quando Freud avança no texto para identificar um segundo erro cometido pelo suposto psicanalista. É certo, diz Freud, que a psicanálise propõe a ausência de satisfação sexual como a causa das desordens nervosas. Mas ela diz mais do que isso, ao declarar que os sintomas nervosos surgem de um conflito entre duas forças: por um lado, a libido e, de outro, uma rejeição da sexualidade – ou um recalque. Ninguém que desconheça esse fato poderia acreditar que a satisfação sexual em si constituiria um remédio de confiabilidade geral para os sofrimentos dos neuróticos. Portanto, os sintomas neuróticos surgem não de uma falta de satisfação, mas, sim, de um conflito entre duas forças. O recalque é, portanto, constitutivo da sexualidade.

O sentido literal é subvertido e negado pelo segundo fator apontado (o conflito). O que nos leva a admitir que o sentido do sexual revela que este implica sua própria obstrução, e que a noção de sexualidade em psicanálise só pode ser pensada na vigência de dois fatores dinamicamente contraditórios – com isso, o sentido do sexual só pode ser ambíguo. Na feliz formulação de Shoshana Felman,* a sexualidade em psicanálise é retórica, uma vez que ela consiste essencialmente da ambiguidade: ela é a coexistência de sentidos dinamicamente antagonistas. A sexualidade na psicanálise coloca em jogo a divisão do sentido, ou melhor, o sentido como divisão, como conflito.
Na esteira da abordagem ao contemporâneo feita por Agamben, talvez se possa pensar que o que comparece como enigma no tempo atual (?) indicia o contemporâneo enquanto obscuridade, uma vez que podemos pensar, com Lacan, o enigma como uma enunciação sem enunciado. Sendo assim, pensar o sentido como conflito equivaleria a circunscrevê-lo como sexual, indicando a direção em que ele sempre fracassa. “Se o discurso analítico indica que esse sentido é sexual, isto só pode ser para dar razão do seu limite”.*

Questão de tempo

 “A estrutura fenomenológica do desejo é justamente valorizada no grau mediato das relações [relations] do porvir” – Jacques Lacan, Psychologie et esthétique, 1935

Lacan, em resenha sobre o livro de Eugène Minkowski (Le temps vecu. Études phenoménologiques et psychopathologiques, 1933), afirmaria que há ali um grande esforço para desespacializar o tempo – esse tempo sempre falseado pela medida, pela cronologia e pelo apaziguamento do sentido enquanto conflituoso –, embora para isso lance mão justamente de uma série de metáforas que colocam em ação a espacialidade que tanto pretende fazer desmoronar, no intuito de impelir a discussão para além do intento quotidiano: quando, sendo a temporalidade uma questão, “nós olhamos instintivamente nosso relógio ou calendário como se em relação ao tempo tudo se reduzisse a assinalar cada evento em um ponto fixo para exprimir em anos, meses e horas a distância que separa uns dos outros”.*

Esse paradoxo, no entanto, encontraria um desfecho no fim do livro – com a intuição mais original da obra, segundo Lacan –: precisamente quando o autor opõe ao “espaço claro, enquadre da objetividade, o espaço negro do tateio, da alucinação e da música”.* Logo, vemo-nos diante de um espaço que descompleta sua própria possibilidade de ser pensado como um todo minutado; um espaço que desconhece onde estão os seus limites, os terrenos que lhe são de direito, bem como as fronteiras entre os elementos que – sob a sua jurisdição aberta – interagem; espaço que, não por acaso, se confunde com a dimensão do corpo extático:

 (...) nem todos os pensamentos estão alojados na cabeça: alguns jazem, ativos, ao redor da boca, modulando o modo de comer, o timbre da voz, ou na superfície erétil dos seios; outros permanecem colados aos olhos; outros, aos ouvidos; outros, na borda do ânus; outros também marcam o sexo que, como todo mundo sabe, não pede opinião à cabeça, e até só faz, eventualmente, o que lhe dá na sua cabeça – jogando, inclusive, contra a cabeça.*

Acrescentaríamos, aí, entre a alucinação e a música, a poesia: afinal, se “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”,* não seria por menos que o próprio Agamben faria da figura do poeta o representante do contemporâneo como tal, capaz de ver na língua suas sombras e fazer com elas algo que transgride (ao passo que também faz com que valham) as regras luminosas da gramática. Em suma, é o fato de que escutar-se/ler-se como um outro, é o fato de dar ouvidos ao que há do outro no código – e em si mesmo, sem negligenciar o que atravessa o falante em seu dizer (um dizer que o excede) – que constitui uma possibilidade de pensar aquilo que é invariavelmente contemporâneo ao sujeito. Isto é, aquilo que nele incide e insiste, a despeito da cronologia, sempre em dissonância com o acorde da atualidade: algo que é tão arcaico quanto futuro, visto que “a contemporaneidade se escreve no presente assinalando-o antes de tudo como arcaico, e somente quem percebe no mais moderno e recente os índices e as assinaturas do arcaico pode dele ser contemporâneo”.*

Digamos, pois, que uma problematização da definição de contemporâneo para além da ideia de atualidade é aquilo que permite depreender em que medida se poderia pensar a contemporaneidade no âmbito do inconsciente, a saber, algo na pendência de uma temporalidade que escapa por entre os dedos da cronologia e que, antes mesmo, faz desse entremeio sua morada – essa khôra [χώρα] de que falava Platão no Timeu [52b]: uma cisão radical no nível do próprio sentido; a indeterminação como tal em forma de lugar-não-lugar. E o escape dessa temporalidade se marca fundamentalmente por um comparecimento extemporâneo, por assim dizer, da origem – de modo que ela se eclipsa em seu pretenso ponto de partida e se dá a ver no convívio das questões mais atuais para o sujeito, assim “como o embrião continua a agir nos tecidos do organismo maduro e a criança na vida psíquica do adulto”.* Não seria por menos, aliás, que Platão falaria da khôra como sendo uma espacialidade que se oferece como que vista em sonho [νειροπολομεν βλποντες, oneiropoloumen blepontes]; e tampouco seria por menos que, no que se refere ao sonho, Freud apontaria como sendo a sua temporalidade precisamente aquela trazida pelo verbo no presente do indicativo (Präsens).

O sonho, portanto, como realização de desejo* – infantil, diga-se de passagem, o que mostra a infância originária inarredá- vel ao sujeito e ao seu tempo coevo –, tem, em sua dimensão presente, algo de sua inescapabilidade, ao mesmo tempo que é algo inapreensível pelo tempo da vigília: o narrar do sonho não se dá sem deixar restos, da mesma forma que aquilo que resta, enigmático (o umbigo do sonho, Nabel des Traums, de que falava Freud), é justamente o vazio agudo em torno do qual o texto onírico se estrutura.

Não é por menos que Freud diz que o inconsciente é atemporal, no sentido em que não tem nenhuma relação com o tempo [keine Beziehung zur Zeit]. O que está em jogo nessa operação entre inconsciente e tempo é, para retomarmos os termos de Agamben* sobre o contemporâneo, “uma singular relação”: na esteira de Lacan, chamemo-la rapport [Verhältnis], isto é, uma relação pautada pela escrita (uma relação que se escreve) – diferente, portanto, da relação enquanto relation [Beziehung]. Ora, entre tempo e inconsciente, não há, portanto, relação, mas isso não no sentido em que se fala que não há relação sexual (aforismo lacaniano no qual, segundo o próprio autor, deve-se ler Verhältnis, e não Beziehung, uma vez que o que não há é a escrita do ato sexual, rapport, e na medida em que sua formalização é pura impossibilidade lógica). Na instância do desejo e das letras que escrevem suas articulações, “um homem inteligente pode odiar o seu tempo, mas sabe, em todo caso, que lhe pertence irrevogavelmente, sabe que não pode fugir ao seu tempo”* do mesmo modo que não pode fugir ao seu inconsciente: isto é, por mais advertido que o sujeito esteja quanto ao fato de que, para ele, há desejo, este lhe é incontornável. Dito ainda de outro modo: é inescapável o fato de que nele há algo que se impõe, que age a despeito da sua vontade, e que marca – para além da divisão entre um corpo e outro –, a própria divisão entre aquele que, ao falar de si, é de um outro que estará falando.

Se apenas se pode dizer contemporâneo “quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a parte da sombra, sua íntima obscuridade”,* é na possibilidade de entrever outra cena – aquela de que nos fala Freud na Traumdeutung* –, ou melhor, é na possibilidade de ser por ela afetado e permitir-se ressoar àquilo que nela acena, que a psicanálise verifica uma autonomia possível do sujeito na ordem do desejo. Dito de outro modo, a cisão do sentido – que dá a ver sua dimensão de conflito e o circunscreve como sexual – abre para a indeterminação, benfazeja aos olhos da psicanálise: indeterminação essa presente desde a anatomia (não vista como destino) até a não-fixidez do objeto de desejo (qualquer um, ainda que ele deixe de ser, a partir daí, um qualquer para determinado sujeito).

Essa cisão é aquilo que, sempre contemporâneo (presente e fugidio qual o sonho), deve ser assumido pelo sujeito para que ele possa prosseguir sem tropeçar em si mesmo, sem ver em seu desejo – que lhe é tão seu, embora por vezes lhe pareça tão estranho – um percalço para seu devir. Digamos, pois, que é na condescendência com isso que, a um só tempo, é originário e atual para o sujeito que estaria a possibilidade de ser original, de fato. A originalidade, portanto, como operação significante do sujeito em relação com a sua história, teria a ver com a aposta de ser contemporâneo a seu tempo e, por assim dizer, com a não renúncia em se reconhecer compatriota de seu próprio desejo. Evidentemente, encarar o intempestivo [intempestif], o extemporâneo [unzeitgemäß], o atemporal [zeitlos] – na pena de Barthes, Nietzsche e Freud, respectivamente – não se dá sem certo trabalho [Arbeit]. Trabalho esse que, para Freud, estava presente no sonho [Traumarbeit] mas também na perlaboração [Durcharbeiten]. Em suma, inseparável daquilo que consiste um trabalho analítico [psychoanalytische Arbeit], afinal: “perceber esse escuro não é uma forma de inércia ou passividade, mas implica uma atividade e uma habilidade particular que [...] equivalem a neutralizar as luzes que provêm da época para descobrir as suas trevas”.*


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